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A evolução tecnológica caminha a passos largos, e alterou geometricamente os paradigmas de comportamentos nos últimos trinta anos. Desde a popularização dos computadores nos anos 90, potencializada com a difusão do acesso à internet no final dos anos 90 e início dos anos 2000, até os dias atuais, a população mundial passou por profundas quebras de paradigmas em razão das possibilidades criadas pelo desenvolvimento da tecnologia em âmbito mundial.

A Lei de Moore1 foi o mantra que embalou ao longo dos anos o desenvolvimento que hoje se vive no cotidiano. Desse modo, a tecnologia se impõe a todos, os novos mecanismos de funcionamento da sociedade se adaptam às necessidades da população, e estas necessidades moldam a forma como a modernidade se comporta para suprir os anseios básicos, ou mesmo excêntricos, das pessoas.

O desenvolvimento da tecnologia tem normalmente nos hábitos e necessidades do mundo real os parâmetros para sua criação e evolução, com o fim de atendimento das aspirações humanas. Então, como exemplo, o incremento de tecnologia voltada à distribuição de alimento ainda tem como núcleo de sua criação o conceito básico de “alimento” prevalecente na sociedade: comida para ser ingerida, apreciada, e de preferência que sofra o mínimo de interferência da tecnologia ofertada como meio para sua obtenção. Assim, quando da utilização de aplicativo para compra e entrega de alimento, o núcleo da ação é justamente a comida para alimentar-se, e não o uso do aplicativo, por mais que tentem convencer o usuário do contrário.

Nesse ínterim, então se estabelece um paradigma para o desenvolvimento da tecnologia: ela deve ser meio para o atingimento de um fim, normalmente ligado ao bem-estar da sociedade. O fim sempre será o obstáculo maior para a inovação tecnológica, pois em muitos casos ele sofre pouca variação (como no caso de necessidade de alimento para nutrição, que é imutável – não se vive sem alimentar-se), o que faz com que tenha que se chegar ao mesmo ponto, mas por um caminho inovador; deve ser criada nova forma, mais eficiente, de atingimento do fim, que permanece o mesmo e pauta a inovação.

Os cartórios são instituições que existem desde o início das civilizações organizadas, e sua função consiste basicamente, de modo extremamente simplista, em um indivíduo receber uma atribuição do Estado para realizar um “filtro” nas relações que acontecem na sociedade, e que envolvam bens importantes para a vida: registro de um nascimento, transferência de uma casa ou de um carro para um terceiro, a guarda de documentos para que não sejam alterados e possam fazer prova no futuro do que aconteceu naquele dia.

Assim como em tantos outros ramos da sociedade, a atividade de notas e registros públicos tem criado mecanismos condizentes com as novas necessidades tecnológicas ao longo do tempo, sem deixar de lado, contudo, a segurança nas relações entre as pessoas. A finalidade da atribuição ainda permanece a mesma: impedir a realização de atos ilegítimos e realizar e perpetuar atos legítimos.

Nesse sentido, por exemplo, foi implementada, em meio à pandemia, nos termos autorizados pelo Provimento 100/2020, do Conselho Nacional de Justiça, a plataforma do E-Notariado, pela qual é hoje possível a assinatura de procurações, escrituras e autorizações de viagem de menores, após a realização de videoconferência em ambiente controlado pelo oficial ou escrevente (ao qual somente se tem acesso após processo de identificação do indivíduo através de abertura de cadastro em um cartório para acesso, com a devida apresentação de documento de identificação válida, ou através de videoconferência, quando a pessoa já tenha sido identificada em outro cartório, através de abertura de firma pelo processo tradicional, verificável através de uma base de dados integrada).

Mas note-se: a utilização da plataforma se dá através de acesso franqueado ao usuário mediante prévia identificação do indivíduo por um cartório, o qual comparece à videoconferência pessoalmente, ficando gravada na própria plataforma o indivíduo e sua manifestação de vontade. O meio é outro, mas o objetivo é o mesmo: a identificação certa da pessoa e sua clara manifestação de vontade.

Nesse contexto, deve ficar claro ainda que, em sentido oposto, a certificação de um ato por uma serventia como legítimo é tão importante quanto a negação de realização por uma serventia de um ato ilegítimo. Ou seja: a via negativa que ocorre no cartório, a negação de realização de um ato que não é legítimo, se constitui como a verdadeira proteção do sistema jurídico através da função dos serviços extrajudiciais.

Desse modo, quando o cartório nega a realização de um reconhecimento de firma que não lhe parece legítimo, por não haver semelhança entre a firma depositada no cartório e a apresentada no balcão, e que não representaria a verdadeira manifestação daquele indivíduo, preserva a integralidade do sistema jurídico, evitando o ingresso de ato possivelmente fraudulento no sistema legal.

A segurança jurídica vai muito além de garantir publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos apresentados às serventias: impedir que sejam inseridos no sistema legal atos eivados de nulidade e que retratem situações irreais é garantir o bem-estar da sociedade, uma vez que através de tais ações são repelidos prejuízos, mitigados conflitos e diminuídas contingências no dia a dia dos indivíduos de modo geral.

Em recente sugestão de alteração normativa, foi proposto que a transferência de veículos entre pessoas seja feita por um aplicativo, com reconhecimento de “identidade” do transmitente pela digital, em substituição à firma por autenticidade realizada nos moldes atuais. Firma por autenticidade é aquela que é feita quando a parte se dirige à serventia com documento legítimo que permita sua identificação com segurança, ao que se soma a assinatura de um livro em que constam os dados da operação, para comprovar que o indivíduo esteve na serventia fisicamente e foi devidamente identificada, garantindo-se assim a identidade do praticante do ato.

Tabelionatos identificam pessoas. Digitais são um elemento de identificação, que se soma a outros quando da identificação, e pode ser reproduzido a partir de uma imagem sua; além do mais, estão armazenadas em milhões de smartphones, e em tantos outros lugares, como portas eletrônicas, sistema bancário, central de sistema eleitoral. A captura da imagem de uma impressão digital, vinculada aos dados de seu titular (que estão disponíveis em diversos bancos de dados e na própria internet), permitiria assim que fraudes na transmissão de veículos fossem realizadas a partir de um celular em qualquer local do mundo.

Ademais, para a verificação de compatibilidade de imagem de digital seria necessário o cruzamento com a imagem legítima, a qual deveria ser previamente disponibilizada à entidade gestora, vinculada aos dados do indivíduo, por entidade que a detém, ou pelo próprio indivíduo. Assim, criar-se-ia um banco de dados centralizado, com imagens de digitais e dados pessoais a elas vinculados, que, se invadido ou capturado esse banco de dados, por si só permitiria a realização de fraudes com todos os dados ali armazenados, de forma concentrada.

No site da Federação Nacional das Associações de Revendedores de Veículos Automotores – FENAUTO, foi veiculada a notícia de que foram vendidos no ano de 2021 mais de 15 milhões de veículos usados no país. Some-se a essa notícia o fato de fraudes em sistemas de ponto eletrônico no trabalho, realizados com “dedos” de silicone, veiculados na mídia. Tem-se então claro o risco da criação de um ambiente ideal para a realização de fraudes no mercado de automóveis.

A tentação das facilidades proporcionadas pela tecnologia pode tornar-se verdadeira proposta de Mefistófoles. Em levantamento realizado pela empresa de segurança digital PSafe, foi apurado que 3,4 milhões de golpes financeiros foram bloqueados no Brasil nos dez primeiros meses de 2021, que tiveram como meio, em sua maioria, SMS, aplicativos de conversa e mensagens eletrônicas via e-mail. Ainda se verifica hoje o aumento exponencial de sequestros relâmpago para a realização de transferências via pix, pela sua facilidade de realização em ambiente digital.

Desse modo, se bastasse a captura da impressão digital para que um indivíduo se identificasse e pudesse realizar ações diversas sem qualquer dúvida de sua identidade, as próprias eleições não precisariam de toda a mobilização que implicam: todos os eleitores votariam de suas residências, por seus smartphones, sem qualquer custo para o Estado, sem mesários, urnas, juízes, promotores, policiamento, etc. A digital é verificada no processo eleitoral, mas como elemento complementar à identificação pessoal realizada através de apresentação de documento de identificação a mesário habilitado; sem documento de identificação, não é permitido o voto.

“Mas carro é diferente”: considere-se então pessoa que adquiriu um carro clonado, fruto de roubo ou furto, e perdeu todo seu dinheiro investido, e multiplique isso por 0,1% do total de venda de carros usados no país, acima exposto, para se ter ideia da grandeza do que uma medida imprópria em um país continental pode ocasionar.

A dinamite, como tecnologia para caça, seria extremamente eficiente, em razão do volume de pólvora nela contida, que mataria a caça com certeza. Entretanto, apesar da caçada ter resultado positivo no sentido de abate do animal pretendido, o fim de alimentar-se dele não é atingido, pelo efeito da explosão. A inviabilização do resultado final pretendido (segurança) em razão da tecnologia utilizada ilustra como a racionalização da tecnologia deve ser considerada quando de sua aplicação para um determinado fim, sem desnaturá-lo.

Garantir que somente o titular de direitos, sem qualquer dúvida de identificação, possa exercê-los sobre o bem é o fim principal dos procedimentos das serventias nestes casos, que se utiliza de filtros e mecanismos que garantem a qualificação positiva de identidade do indivíduo. Dentro desse contexto que foi criada a plataforma do E-Notariado, que permite a realização de atos com toda a segurança possível, e com precisa identificação dos sujeitos e captação de suas vontades, e da mesma forma devem ser tratados tantos outros atos de relevância na sociedade, muitos dos quais de competências das serventias extrajudiciais, para garantir que não ocorram fraudes e que não haja prejuízo para cidadãos em transações realizadas sem os devidos protocolos.

Assim, as barreiras de entrada de atos ilegítimos no sistema jurídico, como praticadas pelas serventias extrajudiciais, devem ser sólidas e prover segurança na negação da realização destes atos. A imposição de meio de realização de atos que não preze pelas necessárias formalidades para identificação de seus praticantes, de modo a garantir certeza de sua identidade, pode levar a prejuízos irreparáveis em grande escala, mas sempre individualmente – só a pessoa ludibriada tem a exata dimensão de seu prejuízo, em sua realidade. Desse modo, enquanto para a estatística ou macroeconomia o ocorrido é “uma fraude”, uma “externalidade negativa do sistema”, para o direito, e em especial para a pessoa ludibriada, é um ataque ao sistema legal, um direito violado, e patrimônio perdido.

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1 Previsão feita por Gordon Moore, ex-presidente da Intel, no ano de 1965, a qual pregava que o número de transistores em um chip dobra a cada 18 meses, em média, mantendo-se em tal nível, sem regredir. 

Alison Cleber Francisco: Doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Doutor em Sociologia do Direito pela USP. Tabelião e Registrador Civil.

Fonte: Migalhas

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