A desjudicialização da usucapião trouxe novas perspectivas a aqueles que pretendem regularizar e proteger o patrimônio que conquistou com tanto labor e sacrifício ao decorrer da vida.
A “advocacia do futuro”, é um dos temas mais abordados na atualidade, tanto pela novidade quanto pelos desafios que traz consigo. A advocacia extrajudicial tem ganhado bastante espaço nos últimos anos, principalmente pelo período extremamente difícil atravessado no último ano, em razão da pandemia da covid 19. Por conseguinte, grandes desafios para advocacia como um todo foram demonstradas, e, com tais desafios, eclodiu-se a necessidade de pensar “fora da caixa”, ou “inovar” do ramo da advocacia, uma vez que o Judiciário se mostrou completamente comprometido com as medidas de urgências, de saúde e distanciamentos necessários. É fato que os estudantes de Direito são treinados a pensar quase que de forma automática a sempre procurar o Judiciário como meio de resolução principal, e inclusive para as questões imobiliárias, notariais e registrais.
Neste mesmo toar, é importante salientar que os meios buscados judicialmente são de extrema relevância, entretanto, temos diversas ferramentas extrajudiciais que visam a resolução dos conflitos, principalmente imobiliários, de forma mais célere, econômica e menos desgastante por assim dizer. A advocacia extrajudicial trouxe uma inovação que está pautada na dignidade da pessoa humana, afinal, a conquista do imóvel registrado em cartório de registro é o sonho, ainda, de mais de 30 milhões de pessoas. Por ser justamente o número aproximado de imóveis irregulares no Brasil.
Esta inovação fez nascer formas extrajudiciais de regularização imobiliária, e entre tais ferramentas está a usucapião extrajudicial, em conformidade com o art. 216-A, da lei 6.015/73, as alterações trazidas pela lei 13.465/17, e a regulamentação dada pelo provimento 65, do CNJ; que visa regularizar imóveis urbanos e rurais, observados a fração mínima de parcelamento exigida em cada localização do imóvel a ser usucapido. A desjudicialização da usucapião trouxe novos contornos mais abrangentes às funções notarial e registral, em conjunto com a advocacia extrajudicial que tem importante papel nessa execução e procedimento que visa entregar ao cidadão mais dignidade, segurança, efetividade, e tranquilidade com o seu patrimônio devidamente protegido.
Os benefícios da desjudicialização da usucapião são diversos, mas, principalmente, a segurança trazida pelas serventias extrajudiciais, visto que estão pautadas como um dos órgãos que possuem mais confiabilidade da população. Nesse sentido, os notários e registradores são chamados a cobrir ausências e lacunas de cidadania e dignidade garantindo a autonomia das pessoas, a formalização de seus mais legítimos anseios, sempre amparados pela segurança e garantia de efetividade.
Na modalidade de usucapião extrajudicial, o pedido é iniciado perante o tabelião de notas, que deve formalizar o instrumento público intitulado de ata notarial. Este registro, em conjunto com outros documentos que serão analisados, será apresentado para o registrador de imóveis competente. É comum que se entenda que o “notário compõe, ao lado do oficial registrador, a estrutura do processo administrativo de usucapião como órgão fiscalizador”1.
O requisito essencial para que seja processado um pedido na via extrajudicial é o consenso entre as partes, seja proprietário, confrontantes ou demais interessados. Assim, Henrique Ferraz Côrrea de Mello entende que “o divisor de águas entre uma e outra modalidade processual é o litígio. Onde há litígio, a questão se desloca para a esfera judicial”2. Logo, ao contrário da usucapião judicial, a usucapião extrajudicial não poderá ser deferida se houver impugnação, seja por parte de algum confrontante, de terceiro interessado ou do proprietário tabular. Havendo impugnação, tanto a lei 6.015/73, como o provimento 65/17 do CNJ autorizam que o registrador Imobiliário efetue a conciliação dos envolvidos. No entanto, se essa conciliação for infrutífera, impede-se o reconhecimento da usucapião pela via extrajudicial. Outra grande diferença é que a atividade registral é extrajudicial, logo, não faz coisa julgada material e pode ser revista judicialmente. Atos judiciários não são praticados pelo registrador, visto que não possui garantias próprias da magistratura, bem como de seus deveres específicos. Sua decisão tem natureza de ato administrativo3.
Deve-se lembrar que a via extrajudicial deve ser vista como uma opção e não obrigação da parte interessada. No início de vigência do novo CPC, muitos magistrados extinguiram o processo, por falta de interesse processual, com o argumento de que a ação judicial seria cabível apenas quando houvesse empecilho ao pedido na esfera extrajudicial. Contudo, o STJ4 entendeu que eleger a via administrativa não é um dever da parte, podendo escolher a ação judicial, ainda que os pressupostos da usucapião extrajudicial estejam preenchidos. Desta maneira, a opção pela via extrajudicial não fere a garantia constitucional do acesso à jurisdição, pois se trata de uma faculdade que é conferida às partes, que ainda possuem o direito de recorrer ao poder Judiciário, caso queiram.
É imperioso salientar que a usucapião extrajudicial é procedimento administrativo que visa regularizar propriedades urbanas e rurais, devidamente inserida como uma das ferramentas de regularização fundiária. Sendo assim, sua prática e manuseio deve ser bem observada e perfeitamente executada, tanto no que se refere aos princípios registrais, documentos que demonstrem a posse com animus domini, a continuidade, a natureza, o tempo de posse, demais provas juntadas; quanto, no momento da análise pormenorizada do estudo de viabilidade de seu processamento; sendo indispensável tal observância para que não se perca tempo, ensejando em sérios e incalculáveis prejuízos aos clientes.
O direito material inserido neste procedimento é protegido, não somente pela legislação pátria, como também pelos nossos tribunais, ao figurar como pendente de regularização registraria, quando não há outro meio aos requerentes senão se socorrerem da presente medida, para formalizar a individualização de sua posse perante o registro imobiliário, pois depende da participação voluntária direta do titular de domínio, o que não é factível, na prática, patente o desinteresse dos que já se desfizeram de seus direitos, estando, portanto, presente o “interesse de agir” para a sua perfeita execução. Isso significa, que a usucapião extrajudicial não poderá em hipótese alguma substituir qualquer outro método de regularização possível de ser realizado, tais como: inventários, adjudicação compulsória, escritura pública de compra e venda, desmembramento com escritura pública de divisão amigável, e demais formas de regularizações; sendo assim, devidamente esgotadas todas estas possibilidades, então a usucapião pela esfera extrajudicial será perfeitamente cabível.
Por fim, conclui-se que a desjudicialização da usucapião trouxe novas perspectivas a aqueles que pretendem regularizar e proteger o patrimônio que conquistou com tanto labor e sacrifício ao decorrer da vida; ensejando que o procedimento administrativo esteja sempre à disposição como via facultativa, mais célere, e sem qualquer intervenção do Judiciário.
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1 MELLO, Henrique Ferraz Corrêa de. Usucapião Extrajudicial. 2. ed. São Paulo: YK Editora, 2018, p. 314.
2 MELLO, Henrique Ferraz Corrêa de; FERRARI Carla Modina. Usucapião em Condomínio. In: PEDROSO, Alberto Gentil de Almeira (Org.). Direito Imobiliário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. v. VIII. (Coleção de Direito Imobiliário), p. 138.
3 NOBRE. Francisco José Barbosa. Manual da Usucapião Extrajudicial. 1. ed. Ananindeua: Itacaiúnas, 2018, p. 70.
4 RECURSO ESPECIAL PROVIDO. BRASIL. STJ. REsp 1824133 / RJ. Recorrente: Selma da Cunha. Recorrido: Luiz Claudino do Nascimento e outro. Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Brasília, 11/2/20. Portal do Superior Tribunal de Justiça, Jurisprudência do STJ, Brasília, 14 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%27201800663793%27.REG.
Rachel Leticia Curcio Ximenes: Sócia do CM Advogados, mestra e doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP, especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura (EPM) e em Proteção de Dados e Privacidade pelo Insper, e presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB-SP.
Diego Souto de Lima: Advogado. Especialista em Direito das Famílias e das Sucessões pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Pós-Graduando em Direito Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Graduado em Direito pelo Instituto Itapetiningano de Ensino Superior (IIES). Foi Escrevente Autorizado (Extrajudicial) de Tabelionato de Notas e Registro de Imóveis. Membro da Comissão de Direito Notarial e de Registros Públicos da OAB – São Paulo.