Os anos passam e velhas questões de direito tributário continuam pendentes de análise pelo Superior Tribunal de Justiça. A recepção ou não do artigo 37, §4º do Código Tributário Nacional é uma delas. O tema é crucial para o planejamento tributário dos contribuintes, posto que trata da não-incidência de ITBI sobre transações imobiliárias nas quais há empresa de atividade preponderantemente imobiliária que é alienante de bens imóveis e passa por uma reorganização societária.
Antes de mais nada, é imperioso que se ressalte que a recepção ou não de norma pela Constituição Federal é matéria de direito intertemporal, não podendo ser considerado um controle de constitucionalidade. O que se analisa no caso é se a Constituição revogou ou não o artigo 37, §4º do CTN. O STJ, portanto, parece ser o tribunal ideal para analisar a questão de forma definitiva.
Anos atrás a discussão girava em torno da classificação ou não do dispositivo em comento como isenção heterônoma. Isenções heterônomas são proibidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, exceto quando prevista em tratado internacional e nos casos de autorizações previstas na própria Constituição [1].
Por isenção heterônoma entende-se aquela isenção concedida por um ente da Federação para desonerar o contribuinte de determinado tributo de competência de outro ente da Federação. É o caso, por exemplo, da União conceder uma isenção de ITBI, imposto de competência dos Municípios e do Distrito Federal. Tal possibilidade é expressamente vedada pelo artigo 151, III da CRFB/1988.
Sendo assim, se o artigo 37, §4º fosse uma isenção, ele não teria sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988, por força do exposto no artigo 151, III da Carta Maior.
Todavia, tal dispositivo não é uma isenção propriamente dita, mas sim uma hipótese de não-incidência. Vejamos o que ele dispõe:
“LEI Nº 5.172, DE 25 DE OUTUBRO DE 1966.
Artigo 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:
I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;
II – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.
Parágrafo único. O imposto não incide sobre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I deste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos.
Artigo 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição. (…)
§4º O disposto neste artigo não se aplica à transmissão de bens ou direitos, quando realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante”.
Ora, o que se percebe é que o ITBI é um imposto que não incide sobre operações societárias. O fato de não incidir sobre tais operações é uma característica deste imposto, faz parte de sua natureza. Portanto, para que fique claro que não incide o imposto sobre operações societárias, o legislador escreveu normas de não-incidência que foram usadas para explicar propriamente o que é o ITBI.
Sainz de Bujanda ensina que tal tipo de norma de não-incidência é uma “regulación positiva de la no sujeción”, também conhecida como isenção imprópria. Eis a lição:
“Com alguma frequência o fato ‘modelado’ pelo legislador de não-incidência, denominado por Sainz de Bujanda de ‘regulación positiva de la no sujeción’, tem tanta proximidade factual com o fato típico tributário que se torna necessária a emissão de uma norma jurídica interpretativa ou definitória para explicitar que aquele fato específico está excluído da hipótese de incidência tributária. (…)
Segundo o professor espanhol, este tipo de isenção que ‘opera desde dentro’, para distinguir das que operam ‘desde fuera’, é componente integrante do pressuposto de fato do tributo, que conteria, assim, junto com os seus elementos positivos, alguns elementos negativos. Estes elementos negativos – isenção por dentro – funcionariam para delimitar negativamente o fato constitutivo da incidência, segundo Alberto Xavier, que, entretanto, fez questão de frisar que estes ‘elementos negativos do tipo’ não deveriam ser confundidos com os fatos impeditivos nas normas isencionais’. (…)
A delimitação negativa do fato gerador do tributo, pela exclusão de alguns tipos, também foi considerada por Souto Maior Borges como uma hipótese de não-incidência, razão pela qual seria um caso de isenção imprópria, pois ‘a lei que isenta apenas descreve e circunscreve o fato gerador, delimitando o âmbito de incidência da regra jurídica tributária, de modo a mantê-la dentro dos limites da competência do poder tributante… A formulação legal dos casos de isenções impróprias consiste numa técnica de definir negativamente os pressupostos de fato do tributo. São hipóteses as de isenção imprópria, em que a lei exclui da tributação determinadas circunstâncias não para excetuá-las, mas para definir de forma negativa quais os fatos a ela sujeitos.’ (…)
‘Na linguagem cientificamente exata de Sainz de Bujanda, dela – dessa disciplina expressa – pode afirmar-se que se trata de um critério de regulação positiva da não-sujeição. Através desta, evita-se que situações não compreendidas logicamente na estrutura do pressuposto possam, dada a sua similitude objetiva com estas, originar a crença de que o estão'” [2].
Não se trata, portanto, de uma regulamentação de imunidade tributária ou de isenção heterônoma, mas sim de norma definidora do fato gerador do imposto. O ITBI tem a natureza de não incidir em operações societárias, o que fica claro com tal norma. Trata-se de um elemento negativo do tipo.
A jurisprudência mais recente tem aceitado tal entendimento, in verbis:
“TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA. ITBI. INCORPORAÇÃO SOCIETÁRIA. NÃO INCIDÊNCIA. ARTIGO 156, §2°, INCISO I, CRFB. ARTIGO 37, §4°, DA LEI 5.172/66(CTN). 1) De acordo com o artigo 156, §2°, inciso I, da Constituição da República, o afastamento da cobrança do ITBI na hipótese de transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, não tem lugar quando ‘a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda (…), locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil’. 2) As imunidades expressas na Constituição da República, da qual é exemplo a ‘não incidência’ radicada no texto constitucional, determinam o que não pode ser objeto de tributação e, enquanto exceções ao poder de tributar, devem ser interpretadas restritivamente. 3) O artigo 146, II, da Constituição da Republica, ao relegar à lei complementar – roupagem jurídica sob a qual foi recepcionada a Lei Ordinária n° 5.172/66(Código Tributário Nacional) — a regulação das limitações constitucionais ao poder de tributar, não confere ao legislador infraconstitucional competência legislativa para ampliar ou restringir as hipóteses de imunidade, a qual, como visto, se caracteriza como regra constitucional negativa de competência especifica. 4) Porém, o constituinte, ao fixar os contornos da norma insculpida no artigo 156, §2º, inciso I, da Constituição, procurou facilitar a formação, extinção e a modificação de empresas, e, assim, estimular o desenvolvimento econômico do País. 5) Nesse contexto, o §4º do artigo 37 do CTN merece ser interpretado de forma sistemática com o caput do respectivo dispositivo legal, bem assim com o disposto no artigo 156, II, §2º, da CRFB/88, vez que apenas explicita aquilo que decorre como lógica da descrição da hipótese de incidência do ITB, na medida em que excepciona a incidência do imposto sobre a transmissão de bens ou direitos quando estes são transmitidos em conjunto com a universalidade do patrimônio da pessoa jurídica incorporada, no âmbito de operação de reestruturação empresarial, sem onerosidade para o adquirente, situação jurídica incompatível com o fato gerador do ITBI. 6) Ademais, não há notícia de que a questão envolvendo a incompatibilidade do artigo 37, §4º, do Código Tributário Nacional tenha sido declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, seja por controle concentrado ou difuso de constitucionalidade. 7) Assim, impõe-se a reforma da sentença para se julgar procedente o pedido autoral para se determinar que o Município réu se abstenha de cobrar o ITBI sobre a transferência dos direitos reais relativos ao imóvel descrito na inicial, em razão de incorporação total pela autora das empresas titulares do direito real de superfície e da nua propriedade sobre o referido bem, nos termos do artigo 156, §2°, inciso I, CRFB c.c. artigo 37, §4°, da Lei 5.172/66(CTN). 8) Recurso ao qual se dá provimento” [3].
“TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
TRIBUTÁRIO — APELAÇÃO — AÇÃO DECLARATÓRIA — ITBI — MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Sentença que julgou procedente a ação. Apelo do Município. ITBI — INCORPORAÇÃO SOCIETÁRIA — A incidência do ITBI está sujeita à ‘transmissão ‘intervivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis […]’, nos termos do artigo 156, II, da Constituição da República – A incorporação de uma sociedade por outra, na qual ocorre sucessão a título universal, não tem caráter oneroso, de forma que não ocorre o fato gerador do ITBI — Precedentes do Superior Tribunal de Justiça sobre o caso semelhante do laudêmio, que também é devido quando há transmissão onerosa, só que do domínio útil na enfiteuse – Além disso, não se trata de operação que ocorra inter vivos, já que a incorporada deixa de existir no ato – Doutrina – Com isso, conclui-se que a regra contida no artigo 37, §4º, do Código Tributário Nacional apenas explicita hipótese de não-incidência do imposto, e não amplia a regra imunizante prevista no artigo 156, §2º, I da Constituição da República — Imposto não devido. Honorários advocatícios fixados em 10% do valor da causa — Verba honorária que equivale a aproximadamente R$ 2.225,00 — HONORÁRIOS RECURSAIS — Artigo 85, § 11 do Código de Processo Civil de 2015 — Majoração — Possibilidade — Ocorre que o Código de Processo Civil não é a única norma a ser aplicada – Aplicação conjunta com a Lei Federal nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) — Entendimento jurisprudencial no sentido de não permitir o aviltamento da profissão de advogado — Honorários que devem ser fixados de forma razoável, respeitando a dignidade da advocacia — Honorários recursais fixados em R$ 775,00 que atende aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, em arbitramento sem onerosidade excessiva aos cofres públicos — Verba honorária que totaliza R$ 3.000,00. Sentença mantida – Recurso desprovido” [4].
Apesar de tais decisões estarem corretíssimas, ainda há resistência para que se reconheça que o artigo 37, §4º do CTN é uma hipótese de não-incidência, como é o caso da seguinte decisão:
“TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO CEARÁ
CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. APELAÇÕES CÍVEIS. MANDADO DE SEGURANÇA. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. IMPOSTO DE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS — ITBI. CISÃO. TRANSMISSÃO DA TOTALIDADE DO PATRIMÔNIO. INCORPORAÇÃO SOCIETÁRIA DE BENS IMÓVEIS. EMPRESAS ADQUIRENTES. EXERCÍCIO PREPONDERANTE DE ATIVIDADE DE TRANSAÇÕES IMOBILIÁRIAS. EXCEÇÃO À REGRA CONSTITUCIONAL DE IMUNIDADE (ARTIGO 156, §2º, I, CF). PRETENSÃO DO RECONHECIMENTO DA ISENÇÃO TRIBUTÁRIA PREVISTA NO ARTIGO 37, §4º, CTN. NÃO RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. IMPOSSIBILIDADE DA UNIÃO INSTITUIR ISENÇÕES DE TRIBUTOS DA COMPETÊNCIA DOS ESTADOS, DO DISTRITO FEDERAL OU DOS MUNICÍPIOS (ARTIGO 151, III, CF). APELAÇÃO CÍVEL DO ENTE MUNICIPAL CONHECIDA E PROVIDA. SENTENÇA REFORMADA. ORDEM DENEGADA. APELAÇÃO DAS IMPETRANTES PREJUDICADA. 1. Na transmissão de bens e direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica para realização de capital e na transmissão por fusão, cisão, incorporação ou extinção da pessoa jurídica, incide o ITBI, se a atividade preponderante da adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil, conforme dispõe o artigo 156, §2º, I, da CF. 2. O artigo 37, §4º, do CTN, ao dispor que não incide o ITBI relativamente à transmissão de bens ou direitos, quando realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante, não pode se sobrepor ao disposto no artigo 156, §2º, I, da CF, que estabelece, sem apontar qualquer exceção, que é devido o ITBI quando a atividade preponderante do adquirente for transações imobiliárias, não tendo, portanto, sido recepcionado pela Constituição Federal. Ademais, o dispositivo tributário não poderia criar norma autônoma sobre imunidade que seja diversa da previsão constitucional. 3. Por outro lado, o artigo 151, III, da CF, ao vedar à União instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, como é o caso do ITBI, também afasta a aplicação da isenção prevista no artigo 37, §4º, do CTN. 4. Apelação Cível interposta pelo ente municipal provida. Recurso das impetrantes prejudicado. ACÓRDÃO A C O R D A a Turma Julgadora da Segunda Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, à unanimidade de votos, em conhecer da Apelação Cível interposta pelo Município, para dar-lhe provimento, denegando-se a ordem mandamental pretendida, restando prejudicado o recurso interposto pelas impetrantes nos termos do voto da Desembargadora Relatora. Fortaleza, 1º de setembro de 2021 MARIA IRANEIDE MOURA SILVA presidente do Órgão Julgador TEREZE NEUMANN DUARTE CHAVES relatora” [5].
Isso tudo colocado, espera-se que o Superior Tribunal de Justiça venha a se manifestar sobre o tema nos próximos anos, tendo em vista a divergência entre tribunais sobre a vigência da lei federal.
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[1] CRFB/1988: Artigo 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993): (…) §2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993) (…) XII – cabe à lei complementar: e) excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços e outros produtos além dos mencionados no inciso X, “a”. [2] SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Teoria e Prática das Isenções Tributárias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 222 p. p. 12-16. [3] TJRJ. 0001663-11.2019.8.19.0067 — APELAÇÃO. Desembargador (a). HELENO RIBEIRO PEREIRA NUNES — Julgamento: 09/09/2021 — QUINTA CÂMARA CÍVEL. [4] TJSP; Apelação Cível 1012379-59.2021.8.26.0053; relator (a): Eurípedes Faim; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro Central — Fazenda Pública/Acidentes — 16ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 18/03/2022; Data de Registro: 18/03/2022. [5] TJCE. Apelação Cível — 0194883-38.2019.8.06.0001, Rel. Desembargador(a) TEREZE NEUMANN DUARTE CHAVES, 2ª Câmara Direito Público, data do julgamento: 01/09/2021, data da publicação: 01/09/2021.Pedro Augusto de Almeida Mosqueira é advogado.
Fonte: ConJur