Quem nunca ouviu falar de uma família com patrimônio vultuoso que após o falecimento de um(a) patriarca/matriarca, os filhos colocaram tudo, ou quase tudo, a perder, uma vez que não receberam qualquer preparação para sucessão patrimonial, comportando-se apenas como meros herdeiros.
“Há duas maneiras de se fazer uma fogueira: uma com madeira seca e outra com sementes. Os herdeiros preferem madeira, pois querem resultados rápidos. Já os sucessores preferem as sementes, pois, plantando-as, sabem que terão uma floresta e nunca mais lhes faltará madeira para se aquecer… Você prefere a madeira ou as sementes? – Augusto Cury” [1]
A cada sucessão o patrimônio familiar é restringido naturalmente pelos custos do inventário. A depender do Estado, podemos chegar ao custo de mais de 20% (vinte por cento) sobre o patrimônio deixado, com a soma das custas judiciais/extrajudiciais, registros, imposto de transmissão (ITCMD) e honorários advocatícios. E muitas vezes os herdeiros não possuem liquidez imediata para saldar esses custos, o que acaba gerando a necessidade de desfazimento de parte do patrimônio do espólio para então efetivamente finalizar o inventário.
Mas não é só o custo do inventário que arrasa com uma família. Há tantos outros transtornos que surgem após o falecimento de um ente, como conflitos e discussões intermináveis.
A princípio o que se mostra de imediato é uma briga por patrimônio, mas que na realidade, o que move os herdeiros ao conflito é a busca por suprir alguma falta, seja de afeto, atenção, amor, etc. E como essa falta não pode ser suprida pelo(a) falecido(a) que já não se encontra mais aqui, é materializada no patrimônio.
E quando falamos em famílias empresárias, a perda pode ser ainda maior não só para a família, mas para todos os envolvidos naquela atividade econômica. Crises financeiras podem ser desencadeadas pela partilha das quotas/ações do falecido.
Logo, a cada geração de “herdeiros” a tendência é que o patrimônio familiar seja reduzido. Ao contrário do que acontece a cada geração de “sucessores”.
Por isso, a importância do planejamento patrimonial e sucessório. Através dele há a possibilidade de utilização de instrumentos com o foco de amenizar a passagem do patrimônio entre as gerações. Instrumentos que vão desde a escolha do regime de bens até uma estruturação empresarial, passando por testamento, doação, partilha em vida, usufruto, seguro de vida, previdência privada, estruturas internacionais e holdings.
O foco principal do planejamento é a paz familiar gerada pela organização, estabelecimento de regras, ordem, garantias, segurança patrimonial e familiar, evitando, assim, conflitos futuros.
Porém, ao tratar de direito sucessório precisamos nos ater aos limites legais que ele requer.
O primeiro limite legal é o respeito à legítima. A autonomia patrimonial do brasileiro é restrita a 50% (cinquenta por cento) dos bens quando há herdeiros necessários.
Segundo o art. 1845 do Código Civil: “São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.” Aqui também precisamos incluir o companheiro como herdeiro necessário, uma vez que o STF (Supremo Tribunal Federal) igualou o companheiro ao cônjuge por meio dos Recursos Extraordinários 64.671 e 878.694, de repercussão geral que declarou inconstitucional o art. 1790 do Código Civil.
E onde fica a autonomia privada da vontade?
A legítima inviolável foi imposta no ordenamento para garantir aos herdeiros necessários a certeza de herança sobre uma parte do acervo, que em tempos pretéritos poderia até fazer sentido. Mas não nos dias atuais.
Afinal, o patrimonialista pode dispor onerosamente como bem entender sobre seu patrimônio e gastar todo o produto das alienações, inclusive nada deixar de herança ou de legítima.
A limitação do que dispor não deveria decorrer da lei, mas da avaliação interna de cada indivíduo. Cada família tem a sua própria história, e a partir dela é gerada uma consciência familiar na qual valores são sedimentados.
Em muitos casos a garantia da legítima inviolável acaba trazendo enormes injustiças dentro da família. Por exemplo, aquele filho bem sucedido patrimonialmente que não precisa daquele quinhão, acaba tirando a oportunidade de outro irmão menos privilegiado. Ou ainda, uma situação clara de abandono afetivo de um filho ou de um ascendente, e que sua fração dentro da legítima está garantida de toda forma.
A limitação da legítima protege a família de ontem e não a de hoje. Porém, precisamos trabalhar com o que temos.
Portanto, ao realizar um planejamento sucessório em que há herdeiros necessários precisa ser observada a legítima na distribuição do patrimônio, para que o planejamento não caia por terra futuramente. E ao invés da busca pela ordem, acabar gerando a desordem entre os familiares.
Hoje a autonomia sobre o patrimônio se dá apenas quando não há herdeiros necessários, conforme art. 1.850 do Código Civil: “Para excluir da sucessão os herdeiros colaterais, basta que o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar.” Os herdeiros colaterais não compõem a legítima e só serão chamados a herdar na falta de herdeiros necessários e de planejamento sucessório.
No planejamento ainda se faz necessária a observância de outra limitação: a vedação ao pacto sucessório, mais conhecido como pacta corvina, previsto no art. 426 do Código Civil, não podendo ser objeto de contrato herança de pessoa viva.
Essa vedação se dá porque a herança só existe após a abertura da sucessão, ou seja, após a morte. Logo o objeto do contrato que verse sobre herança futura seria inexistente. Havendo que ser ponderada a renúncia à herança, principalmente a renúncia ao direito concorrencial do cônjuge/companheiro.
A vedação ao pacta corvina tem basicamente três propósitos: a) evitar mercantilização da morte, com a torcida pela morte do outro; b) não inibir a liberdade de testar; c) não ferir a ordem pública.
Porém, a renúncia não fere nenhum desses propósitos. Afinal, a vedação ao pacta corvina deve ser aplicada às hipóteses de receber a herança, e não de renúncia.
É ilógico pensar que o casal através do pacto antenupcial pode renunciar à meação adotando o regime da separação total de bens e não pode renunciar a herança, ou ao menos o direito concorrencial a ela.
A escolha do regime da separação total de bens nada mais é do que a renúncia do patrimônio que ainda será constituído ao longo da vida conjugal. Porém, nossa jurisprudência não permite que esse mesmo casal renuncie antecipadamente a herança referente ao patrimônio particular, ou seja, que não ajudou a construir. Patrimônio particular composto por bens troncais (tronco familiar), como bem expõe o nobre professor Rolf Madaleno.
É um verdadeiro contrassenso!
Porém, é esse o entendimento predominante em nossa jurisprudência, inclusive o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou em várias oportunidades sobre a questão no sentido de que “a renúncia da herança pressupõe a abertura da sucessão”. [2]
Portanto, há que se observar dentro do planejamento sucessório também tal vedação, para que não haja disposições contratuais que configurem pacto sucessório. Apesar de estarmos a caminho de uma mitigação sobre esse entendimento em relação à renúncia.
O direito sucessório atual apresenta limites à autonomia privada, o que não corresponde à família contemporânea. Mas aos poucos buscamos formas alternativas de composição familiar atentando para as particularidades de cada núcleo, a fim de garantir a harmonia, ou ao menos, minimizar os conflitos que poderão ser desencadeados no momento mais difícil para a família, a morte.
Ana Carolina Tedoldi: Advogada, Gestora Imobiliária, Pós-graduanda em Holding e Planejamento Societário, Presidente da Comissão de Planejamento Patrimonial da Família da OAB-RJ Barra da Tijuca, Membro da Comissão de Direito das Sucessões IBDFAM, Membro da Comissão de Direito Patrimonial das Famílias IBDFAM-RJ.
[1] CURY, Augusto. Pais inteligentes formam sucessores, não herdeiros. 1.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 47.
[2] STJ, REsp n. 1.196.992/MS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 06.08.2013, DJe22.08.2013; STJ, REsp n. 1.591.224/MA, Rel. João Otávio de Noronha, Terceira Turma, j. 26.04.2016, DJe 29.04.2016.
Fonte: Ibdfam