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Tente imaginar, caro leitor, que um belo dia você se depara com vários eventos aleatórios e extraordinários e se põe a pensar que absurdo seria se suspendêssemos as presunções no direito civil, tornando regra as hipóteses de exceção e vice-versa. Neste estranho mundo você testemunharia, por exemplo, a queda de um raio no seu terreno e daí concluiria que naquele ponto não deveria construir porque outro corisco poderia precipitar-se no mesmo local. Imagine, por hipótese, que você tivesse recebido um mandado judicial para promover o registro de determinado título e logo outro mandado ingressasse, ao mesmo tempo, determinando, sob pena de prisão, que se não promovesse o registro daquele título. Ou ainda que recebesse duas escrituras de hipoteca lavradas na mesma data, apresentadas no mesmo dia, que determinassem, taxativamente, a hora da sua lavratura, nos termos do art. 192 da LRP.

A você ocorreria alterar todo o processo de registro em razão destas exceções e em prejuízo das regras ordinárias hauridas da praxe registral?

Pois bem. Foi isso que aconteceu com o SERP – Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Sob o pífio argumento de que um ponto único na internet, com atribuições subdelegadas de protocolo (RTD, RCPJ e RI – inc. V do art. 3º da MP 1.085/2021), se evitaria o risco de conflito e contraditoriedade na constituição de garantias móveis e imóveis no mesmo título e com registros em especialidades diversas. A “prenotação” dos títulos, feita concomitantemente na plataforma eletrônica do SERP, evitaria o risco de que um raio pudesse fulminar a eficácia jurídica do negócio1.

Nunca entendi muito bem este argumento que me soava simples subversão da ordinariedade dos processos registrais em favor de hipóteses excepcionais, francamente cerebrinas. A simples regulação uniforme, a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça, seria mais do que suficiente.

As teses que se multiplicam são engendradas em razão da histórica ineficiência sistêmica dos registros públicos, que não se modernizaram a tempo – malgrado o fato de, há mais de uma década, termos apresentado à comunidade jurídica um modelo elegante de Registro de Imóveis eletrônico2.

De outra banda, como compreender que se encaminhe a um escaninho único demandas cuja natureza e interesses são essencialmente diversos? Quem necessita de uma certidão de casamento, não vai bater às portas eletrônicas do Registro de Imóveis, assim como quem busca registrar a sua propriedade imobiliária não direciona seu pleito ao Registro Civil. E assim sucessivamente. Se a ideia fosse levar o RTD para o âmbito dos modelos sugeridos por organismos internacionais (OEA, UNCITRAL etc.)3, por qual razão buscou-se tracionar nesta aventura temerária registros tão diversos como o Registro Civil de Pessoas Naturais, de Pessoas Jurídicas e de Imóveis?

Este melting pot registral é regressivo e disfuncional; nos reconduz a modelos organizativos já superados pela nova ordem constitucional, como procurei demonstrar em outro artigo4. A menos que se pretenda não exatamente um retorno, mas simplesmente a ultrapassagem dos modelos tradicionais de registração, confiando o mister registral a entidades privadas.

A torção sistemática experimentada pela reforma talvez respondesse a esses impulsos. A constituição do SERP quadra no contexto da instituição de uma plataforma centralizada e consolidada de registros públicos afinada com a Lei Modelo sobre Garantias Mobiliárias5 e de outras iniciativas semelhantes.

GRANDINO RODAS traduz e defende a medida de modo bastante claro:

“Registro central significa uma base central a que se conectariam todas as unidades de serviços do país; ou seja, cartórios, ofícios e centrais. Dessa forma, evitar-se-ia o duplo registro. Em havendo acesso ágil e indiscriminado a certidões e informações, qualquer interessado poderia fazer uso do sistema, inclusive o menos instruído”6.

O prestigioso jurista segue desfiando uma série de vantagens – operação mais célere com registros centralizados, barateamento dos custos de due diligence, padronização de processos, interoperabilidade entre as centrais estaduais e cartórios etc. etc.

O tema não é recente. Anteriormente houve uma defesa do modelo que a MP 1.085/2021 acabaria por emular. Em relação ao registro de garantias mobiliárias, BAZINAS defenderia a utilização de um sistema de registro baseado em “formulários”, espécie aperfeiçoada de extratos digitais, “registro declaratório-negativo”, que deveria ser realizado em sistema eletrônico e com baixo custo, “estimado entre 5 a 10 dólares por registro”. Segundo ele, dever-se-ia substituir a modalidade de registro de títulos, “o qual requer a verificação de formalidades sobre o título a ser registrado pelo Serviço de Registro, como a legalização de assinaturas”, por um sistema mais simples e eficiente7.

FÁBIO ROCHA PINTO por seu turno sustentaria que o sistema registral deveria ser “unitário, universal e unificado”, e que a tal unificação deveria levar à “centralização dos dados de registro, com a possibilidade de consulta em uma única certidão nacional”8. A síntese de sua proposta era: (a) unificação registral, (b) sistema de formulário e (c) centralização eletrônica9. O mesmo autor vislumbrou no SINTER (Decreto 8.764/2016) uma solução adequada:

“A unificação exige a centralização dos dados de registro, com a possibilidade de consulta em uma única certidão nacional. No exemplo apresentado pelo palestrante, a centralização poderia ser realizada por meio do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais – SINTER”.

Compare essas ideias com as que foram consumadas na MP 1.085/2021 e teremos uma boa antevisão que nos poderá ajudar a iluminar e conduzir na compreensão da norma.

A detergência suavizadora de bits e bytes

Antes de prosseguir, sinto-me novamente no dever de registrar que a opção legislativa não é tão importante quanto os seus pressupostos – ou sua inspiração mediata ou imediata. Que o legislador (ou o Executivo) faça o que fez, não é tão importante; o problema reside na subversão do regime da delegação pessoal em favor de entidades registradoras centralizadas, entes personalizados que ainda não contam com a competência plena e reconhecida pelo sistema legal na promoção de registros com eficácia jurídica10.

Digo que ainda não contam com essa competência, mas uma larga avenida se abriu com esta medida provisória. É possível criar plataformas para-registrais, como o sugerido pelos ilustres autores da medida provisória (e dos artigos anteriormente citados). Certamente um sistema que poderá ser mais barato, eficiente, simples e confortável (além de eletrônico), quando comparado com o que se tem hoje. Somos conduzidos suavemente aos portais de um verdadeiro Eldorado Registral, ambiente eletrônico ordenado, limpo, moderno e eficiente, mas que não será um verdadeiro registro de direitos, cujo mister é objeto de delegação de funções públicas a juristas especializados, provados por concursos públicos.

Além de outros aspectos relacionados com os custos transacionais envolvidos na substituição do nosso tradicional modelo de registro de títulos, como qualificado por BAZINAS, é necessário enxergar o óbvio. Sacrificado o sistema de cariz jurídico, o único obstáculo que, afinal, poderá remanescer será o elemento humano. Nesse ecossistema digital, uma classe de juristas será convertida em afanosos amanuenses vinculados ao sistema eletrônico de informações. A relevância dos registradores tenderá a reduzir-se dramaticamente.

Notem que tudo isso nos é apresentado sob o signo da modernidade – uma solução limpa, ordenada, higiênica, econômica, em conformidade com os novos paradigmas da “sociedade da transparência” – como se a trama registral representasse uma aspereza sistêmica, cuja sujidade devesse ser expelida pela detergência suavizadora de bits e bytes.

A qualificação registral cingir-se-á ao preenchimento de meros campos pré-definidos no extrato eletrônico (art. 6º da MP 1.085/2021) – ou em “formulários” eletrônicos, espécie de algoritmo que pode embarcar inteligência artificial e tecnologia de machine learning. Os contratos serão automatizados (smart contratacts) e afinal, grand finale!, code is law.

Neste ecossistema de redes e centrais eletrônicas personalizadas, os nódulos ineficientes tendem a ser eliminados por representarem custos e burocracia. A tendência avistável é a abreviação dos tramos da infovia transiente que ainda liga o usuário a cada unidade que compõe o sistema registral.

As infovias não têm semáforos

As operações tenderão a ser realizadas pelos próprios interessados, atuando diretamente nas plataformas digitais das entidades registradoras.

Vejamos um aspecto singular da reforma. Suprimido o reconhecimento de firmas, a comprovação de autenticidade (fixação de autoria) dos documentos privados submetidos a registro (artigos 127 e 129 da LRP) caberá “exclusivamente ao apresentante” (§2º do art. 130 da LRP). Vale reproduzir o texto legal:

“§ 2º  O registro de títulos e documentos não exigirá reconhecimento de firma, cabendo exclusivamente ao apresentante a responsabilidade pela autenticidade das assinaturas constantes em documento particular”.

Até há bem pouco – parece que foi há um século! – , a definição da autoria do documento era matéria muito relevante para o direito (e para os Registros Públicos, em particular) e ela se relacionava com a prova pré-constituída, um fator relevantíssimo no jogo probatório:

“A indagação da autoria do documento é de importância capital, tanto no aspecto teórico como do aspecto prático, pois que diz respeito à proveniência do documento, e, portanto, à verificação da fé que deva merecer. De tal relevo o assunto […] que toda a teoria do documento se acha dominada pelo problema de paternidade”11.

No texto da medida provisória embaralha-se o ato material e o ato jurídico da formação do título12, investindo qualquer apresentante dos poderes de autenticação e certificação próprios de delegatários da fé pública – o que, afinal, já não importa muito. Na lógica desta medida provisória, tal supressão não é tão relevante quanto o fato de o documento, seja qual for o seu conteúdo, forma, ou mesmo autoria, esteja arquivado (“registrado”) nos repositórios eletrônicos do SERP. Tão simples e rápido quanto um [enter] de permeio entre um café e um cigarro na sacada.

A própria medida provisória não deixará de reiterar (e agravar) a lógica do modelo de transubstanciação dos registros de direitos (títulos) convertidos em meros registros de documentos (ou cadastros privados, aka entidades registradoras), em que o controle jurídico se dá ex post, por meio da intervenção jurisdicional. O art. 161 da LRP reza:

“Art. 161. As certidões do registro de títulos e documentos terão a mesma eficácia e o mesmo valor probante dos documentos originais registrados, físicos ou nato-digitais, ressalvado o incidente de falsidade destes, oportunamente levantado em juízo”.

Nos termos do art. 428 do CPC, cessa a fé do documento particular “quando for impugnada a sua autenticidade e enquanto não se comprovar a sua veracidade”. Ora, a simples impugnação de autenticidade do documento faz cessar a fé do instrumento particular. Justamente porque estes documentos não gozam de fé pública, “a lei não exige o reconhecimento judicial de falsidade para que percam seu valor probatório. Bastará a impugnação da autoria (autenticidade) ou a impugnação do conteúdo (quando supostamente tenha ocorrido preenchimento abusivo) para que se ponha em dúvida o seu valor”13.

Pouco se acrescentou ao quadro normativo anterior a adição da expressão eficácia, pois, consequência dependente da validade, impugnada que seja a autenticidade, suspende-se a plena eficácia. A querela di falso desconstitui “a respectiva eficácia probatória (= deixam de provar)”14.

Não se argumente que o arquivamento de um instrumento privado num Registro Público converte-o, ipso facto, em um documento “público”. Tampouco se “reputam instrumentos públicos as certidões que deem de sua existência e conteúdo os oficiais do Registo de Títulos e Documentos”, desde EDUARDO ESPÍNOLA15.

Quando se diz que a certidão terá “a mesma eficácia e o mesmo valor probante dos documentos originais registrados”, tal disposição, mal compreendida, pode levar à “monstruosidade” (sic) de que “qualquer documento falso, uma vez registrado, tornar-se-ia válido e provado! … Ora, isso não é possível”, como registrou a seu tempo AZEVEDO MARQUES16.

Este tema foi debatido e bem resolvido ainda na década de 20 do século passado quando juristas, reunidos no antigo Instituto de Advogados, discutiram a “Tese LIMA PEREIRA”. As certidões do RTD, disse o mesmo AZEVEDO MARQUES em passagem célebre, “têm fé pública, não há duvidar, mas tão somente para provarem que o registro se fez, e em data determinada, ficando sempre os documentos originais” subordinados aos exames e provas posteriores”. A comissão sufragou a seguinte conclusão:

“A certidão extraída por oficial do Registro de Títulos e Documentos Particulares, de transcrição integral do documento, sendo impugnada, não contém, por si só, desacompanhada do original, valor probante algum”.

O documento público faz prova da sua formação e dos fatos que o tabelião colher no ato por ele lavrado (art. 405 do CPC). Não há equivalência entre um (público) ou outro (privado) neste aspecto; portanto, não se confundem as disposições dos artigos 427 e 428 do atual CPC.

O elemento fundamental à produção de eficácia probatória nos documentos particulares, avulta no conteúdo e na autoria. É a presunção legal da autoria que torna autêntico o documento. Diz o art. 411 do CPC que se considera autêntico o documento quando o “tabelião reconhecer a firma do signatário” (inc. I). O simples reconhecimento das firmas é um meio rápido, econômico, seguro e eficaz para fixar a autoria e robustecer a prova de modo a premunir as partes na proteção e defesa dos seus interesses. O mesmo ARAKEN DE ASSIS averba:

“Reconhecida a firma por autenticidade, ou seja, subscrito o documento particular na presença do tabelião, o art. 411, I, declara-o autêntico. Ao documento particular se acresce o elemento público, ou seja, a fé do tabelião”17.

É evidente que as considerações aqui lançadas se aplicam aos instrumentos particulares assinados com firmas digitais. A assinatura digital da ICP-Brasil reúne em si os elementos presuntivos de autoria18. O “processo de digitalização que empregar o uso da certificação no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) terá garantia de integralidade, autenticidade e confidencialidade para documentos públicos e privados”19.  Voltarei em breve ao tema das assinaturas eletrônicas em virtude de recentes alterações legislativas.

O sumidouro registral e a ineficiência do sistema

O progressivo esvaziamento dos registros jurídicos se constata facilmente. A constitutividade do registro das garantias fiduciárias sobre veículos automotores foi destruída por um argumento que, no fundo, se assentava e legitimava pela ineficiência da arquitetura analógica do registro de direitos.

O registro nos órgãos de trânsito seria considerado pelo STJ “mais eficaz do que a mera anotação no Cartório de Títulos e Documentos (RTD)”, na dicção do ministro LUIZ FUX, em triste precedente para a categoria. A exigência legal seria uma “odiosa imposição”, segundo ele, em afronta ao princípio da razoabilidade, “posto impor desnecessário bis in idem, máxime à luz da interpretação autêntica levada a efeito pelo novel artigo 1.361 do Código Civil”20.

Daí a se consagrar no STF a constitucionalidade do § 1º do artigo 1.361 do Código Civil “no que revela a possibilidade de ter-se como constituída a propriedade fiduciária de veículos com o registro do contrato na repartição competente para o licenciamento do bem”21.

Um típico exemplo de transubstanciação de um registro administrativo (cadastro de veículos automotores) em registro de direitos.

A ideia de que haveria um odioso bis in idem na registração deve nos levar a refletir seriamente acerca desta insinuante revolução de veludo: registro de gravames em registros imobiliários e sucessivamente “registrados” em entidades registradoras (§2º do art. 22 da Lei 10.931/2004); registro em plataformas digitais e nos cartórios que compõem o círculo registral. Ou, o que é muito pior: na fusão de ambos.

A “eficácia” trânsfuga pode ser acolhida no “útero eletrônico” de uma entidade para-registral22.

A verdade é que as coisas, nesse ambiente das redes eletrônicas, fazem-se transparentes, líquidas, lisas e qualquer rugosidade ou aspereza tende a ser expelida do sistema. Diz BYUNG-CHUL, que os meios tornam os seus conteúdos transparentes quando abandonam qualquer “negatividade”, quando as coisas “se tornam lisas e planas, quando são inseridas sem resistências na torrente lisa do capital, da comunicação e da informação”. E conclui:

“As ações se tornam transparentes quando se fazem operacionais, quando se submetem aos processos de cálculo, direção e controle. O tempo converte-se em transparente quando nivela-se como sucessão de um presente disponível”23.

Aqui está o receituário da conversão de um típico sistema de registro de direitos em um mero registro de documentos a cargo de centrais digitais personalizadas privadas (§4º do art. 3º da MP 1.085/2021).

Senhoras e Senhores, eis o milagre da transubstanciação do vinho em água chilra.

Enfim, visto de modo ligeiro, a solução há de soar bastante atraente e atenderá aos reclamos do capital financeiro, pendendo “naturalmente” para tutela dos interesses da parte mais poderosa da relação jurídica.

O registro jurídico rende-se ao tropismo do capital financeiro, sem qualquer consideração sobre ideias aparentemente ultrapassadas – como direito do consumidor, tutela pública de interesses privados, pré-constituição de provas, fixação ex ante de autoria nos instrumentos privados etc. etc.

O preenchimento de requisitos formais, como outrora previstos expressamente na lei, eram exigências criadas para premunir as partes na melhor defesa de seus direitos, sem que tivessem que se socorrer do Poder Judiciário para sanar e estabilizar as suas relações jurídicas.

Este sistema não reclama, para sua efetivação, mais do que tecnologia e investimentos massivos – o que não falta ao mercado de unicórnios tecnológicos e seus investidores.

Com essas medidas reformistas, buscou-se superar as asperezas próprias do discurso jurídico, suprimindo-se os pré-requisitos da registração e a própria qualificação registral, condenando o sistema a figurar com destaque no elenco de meros cadastros administrativos, a cargo de entidades registradoras personalizadas privadas.

Mais cedo ou mais tarde, todos acabarão na contingência de disputar o mercado pela via da concessão ou da licitação, sob fiscalização do Banco Central do Brasil. E poderão, enfim, dormir em paz.

É possível fazer as coisas de outro modo?

Sim, é possível. A saída seria buscar soluções tecnológicas baseadas na descentralização e coordenação do sistema registral em meios eletrônicos. A tendência que se verifica neste exato momento, revelando o estado da arte da tecnologia, é justamente a descentralização, fator de segurança e autonomia de iniciativas como bitcoin, da famosa blockchain, de outros criptoativos e iniciativas congêneres.

Já tive ocasião de me manifestar sobre o problema da centralização de dados:

“Todos sabem que penso ser factível, como resposta aos desafios postos, conceber uma infraestrutura em que se possa entrar e sair de todos os nós que compõem o grafo registral pela reafirmação coordenada e arquetípica dessa maravilhosa máquina de descentralidades representada pelo Registro Imobiliário brasileiro”.

“Não é necessário esvaziar a importância ou suprimir cada nó dessa imensa rede, eis que a rede somos nós! Isto nos dá identidade, fortaleza e nos singulariza. Para este velho registrador, a busca do Graal registral consiste, basicamente, em reencontrar e reconhecer os caminhos que nos conectam com nossa essencialidade, formada do conjunto de seus vários vértices (nós) que compõem o grande círculo registral”24.

Sobre a questão da centralização versus descentralização, sempre entendi ser esta uma questão subalternada a outra, mais importante ainda, que é a natureza jurídica da delegação25.

A contraposição de conceitos e modelos centralizados X descentralizados diz respeito à infraestrutura tecnológica de base meramente instrumental. A suplantação do modelo de delegação de uma função pública notarial e registral, exercida em caráter pessoal e indelegável (art. 236 da CF), substituído por outro, muito diverso, cria um cenário propício para que exsurjam, como têm despontado, entidades privadas personalizadas a desempenhar atividades próprias de registradores públicos – as tais entidades registradoras.

O SERP insinua uma tredestinação, espécie de subdelegação de atividades notariais e registrais, de parcelas significativas de funções públicas. As Notas e os Registros Públicos brasileiros exercem uma função típica de Estado na tutela pública de interesses privados. Esta configuração é reconhecida de modo uniforme pelo STF. Vale a pena citar MOREIRA ALVES, em memorável voto:

“Os tabeliães e os oficiais registradores – que são órgãos da fé pública instituídos pelo Estado e que desempenham atividade essencialmente revestida de estatalidade – dependem, para efeito de ingresso na atividade notarial e de registro, de prévia aprovação em  concurso público de provas e títulos […]”.

Os notários e registradores, segundo o ministro, estão “incumbidos de velar pela segurança, registro, publicidade e autenticidade dos atos jurídicos, além de investidos na  relevantíssima função inerente à tutela administrativa dos interesses privados (JOSÉ FREDERICO MARQUES, “Manual. de Direito Processual Civil.”, vol. 1, p. 259/264, itens 216-221, 13 ed., 1990, Saraiva; MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, vol. 1/134, item n. 103, 14ª ed., 1990, Saraiva, v.g.)” […]. E remata:

“Afigura-se-me inquestionável que as Serventias extrajudiciais constituem instituições de direito público, organizadas pelo Estado, em ordem a preservar a segurança  das situações jurídicas individuais. Os tabeliães e os oficiais registradores, nesse contexto – e no desempenho de seu ofício público -, dispõem de uma prerrogativa singular, ínsita à própria e suprema autoridade do Estado, consistente no exercício do poder certificante, destinado a atestar a veracidade e a legitimidade de determinados fatos e atos jurídicos”.

“Essa circunstância só faz acentuar a estatalidade que qualifica as atribuições dos serventuários extrajudiciais, como enfatizou JOÃO MENDES JÚNIOR, em obra clássica (Órgãos da Fé Pública, 2ª ed., 1963, Saraiva)”26.

Ao atrair e concentrar tais funções (não somente dados, o que seria igualmente problemático) em entidades para-registrais, mesmo aquelas criadas por registradores, damos um passo rumo a um mundo incerto, dando ocasião a fenômenos disruptivos que podem levar ao colapso instituições tão tradicionais como o são os registros públicos.

A mesma eficiência, agilidade, comodidade e modicidade pode ser alcançada com o prestígio e valorização das instituições tradicionais – pelos órgãos da fé pública, como referiu o ministro.

Enfim, sobre a reconformação do registro público em centrais personalizadas ser (ou não) mais eficiente, barata e adequada às necessidades jurídicas e econômicas da sociedade brasileira, eis uma questão que não foi suficientemente debatida entre nós, registradores, e entre juristas de escol. 

A consequência direta do fenômeno de desinstitucionalização dos registros públicos, após sucessivas quebras disruptivas, é que tanto as operações eletrônicas de registro, quanto os dados albergados nas serventias, como consectário lógico do sistema de informações, migrarão do seu locus tradicional (art. 22 e ss. da Lei 6.015/1973 c.c. art. 46 da Lei 8.935/1994) para o ventre de entidades para-registrais, onde serão centralizados e processados por máquinas coadjuvadas por amanuenses.

Deve-se diligente perquirir: isso é bom? É ruim? Talvez não me caiba dar as respostas a estas e a tantas outras perguntas que deixei espalhadas como migalhas nesta longa estrada pela qual já não é possível retornar.

Tenho a impressão, baseada na minha experiência pessoal, de que os “meios acabarão por transformar o emissor, o conteúdo e o receptor”, parafraseando McLUHAN. Ao final e ao cabo, teremos outra coisa, que não tem história, tradição, nem destino, algo que se não confunde com o Registro de Imóveis que a sociedade tão bem conhece, confia e respeita.

O sarampão reformista pode nos levar a caminhos sem volta. Você está preparado?

__________

1 O tema foi agitado na academia. V. BODINI. Constanza. Registro de garantias mobiliárias: uma proposta para sua modernização. São Paulo: FGV, 2019. Acesso .

2 Falo do SREI – Sistema de Registro eletrônico de Imóveis. Coordenado pelo CNJ, em parceria com a LSITec, a especificação do modelo e sua prova de conceito foram avalizadas por juristas, cientistas e registradores de escol. Para uma antevisão.

3 Lei Modelo Interamericana sobre Garantias Mobiliárias da OEA, aprovada em 2002, pela Lei Modelo sobre Garantias Mobiliárias da UNCITRAL, aprovada em 2016, pela Convenção sobre Garantias Internacionais Incidentes sobre Equipamentos Móveis e pelo Protocolo à Convenção sobre Garantias Internacionais sobre Incidentes sobre Equipamentos Móveis Relativo a Questões Específicas ao Equipamento Aeronáutico, firmados na Cidade do Cabo em 2001 e ratificados pelo Brasil em 2013, e pelo Protocolo MAC (mineração, agricultura e construção). As referência firam hauridas da monografia de CONSTANZA BODINI, citada na nota 1.

4 V. JACOMINO. Sérgio. SERP e o Monstro de Horácio in MP 1.085 e o Monstro de Horácio. São Paulo: Observatório do Registro, 2022. Acesso aqui.

5 “The Model Registry Provisions have been drafted to accommodate flexibility in registry design. That said, the Registry should be electronic in the sense of permitting information in registered notices to be stored in electronic form in a single database (see Secured Transactions Guide.).[.]. An electronic registry database is the most efficient and practical means to implement the recommendation of the Secured Transactions Guide that the registry record should be centralized and consolidated [.]“. V. UNCITRAL – Model Law on Secured Transactions Guide to Enactment. Vienna: UN, 2017, pp. 49-50.

6 RODAS. João Grandino. Sistema registral precisa favorecer a utilização de garantias mobiliárias. Conjur. 11/6/2020. Acesso .

7 BAZINAS. Spiro. Encontro CNF: Os instrumentos internacionais e o regime das garantias do crédito – Perspectivas e propostas para um melhor ambiente de negócios no Brasil. CNF, 2017, p. 23.

8 PINTO E SILVA. Fábio Rocha. Op. cit. p. 34.

9 V. especialmente p. 37.

10 Sobre esta “compulsão centralista” vide a série de artigos publicados no Observatório do Registro. Brevitatis causa: O centro é marginal – viva a centralidade das periferias! In JACOMINO. Sérgio. IRIB – até aqui viemos e daqui outros haverão de partir. São Paulo: Boletim do IRIB em Revista n. 363, abril de 2021, p. 6. Acesso aqui.

11 SANTOS. Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e Comercial. Vol. IV. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1966, p. 42, n. 20.

12 A formação material de algumas espécies de contratos está a cargo da máquinas ou de proponentes (agentes financeiros etc.). Diz CARNELUTTI: “Avverto qui subito che per formazione del documento non intendo tanto l’atto materiale quanto l’atto giuridico della sua formazione; o, più, chiaramente, per formatore o autore del documento non indico tanto colui che materialmente lo forma, quanto colui, cui l’ordine giuridico ne attribuisce la formazione, cioè rispetto al quale se verificano gli effetti della formazione medesima [.]“. CARNELUTTI. Francesco. La Prova Civile. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1992, 144, n. 36.

13 ARENHART. Sérgio Cruz. Breves Comentários ao CPC. WAMBIER. Teresa Arruda Alvim, et. al. Org. São Paulo: RT, 2015, p.1.087.

14 ASSIS. Araken. Processo Civil Brasileiro, 2ª ed. Vol. III, 2016, p. 792, § 1.944.

15 ESPÍNOLA. Eduardo. Manual do Código Civil, Vol. III, parte 3ª. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1929, p. 342.

16 Revista dos Tribunais n. 70/297. A lição seria repercutida na jurisprudência. V. Ag. Pet. 230.213, Franco da Rocha, j. 4/10/1974, rel. des. MÁRCIO MARTINS FERREIRA. Acesso aqui.

17 ASSIS. Araken. Op. cit. nota 14, p. 730.

18 Idem, ibidem, nota 14, p. 684, n. 1.916 in fine.

19 É a redação do inc. II do art. 18 da Lei 13.874/2019. Cfr. tb.  § 1º do art. 1º da MP 2.200-2/2001; inc. II do art. 411 do CPC.

20 STJ REsp 686.932-PR, j. 1/4/2008, DJ 10/4/2008, rel. min. LUIZ FUX.

21 STF RE 611.639- RJ, j. 21/10/2015, DJ 15/4/2016, Pleno, rel. min. MARCO AURÉLIO.

22 Deliciosa expressão do advogado paulistano, Dr. ERMITÂNIO PRADO. JACOMINO. Sérgio. A SERPENTINA REGISTRAL (aka Reforma Curupira). As bolhas da modernidade. São Paulo: Observatório do Registro, 2022, acesso aqui.

23 “Matters prove transparent when they shed all negativity, when they are smoothed out and leveled, when they do not resist being integrated into smooth streams of capital, communication, and information. Actions prove transparent when they are made operational – subordinate to a calculable, steerable, and controllable process. Time becomes transparent when it glides into a sequence of readily available present moments“. HAN, Byung-Chul. The Transparency Society. California: Stanford University Press, 2015.

24 JACOMINO. Sérgio. Até aqui viemos – daqui outros haverão de partir. Op. cit. nota 10.

25 Daqui em diante reproduzo, literalmente, o que se acha em JACOMINO. Sérgio. Agonia central – ou anomia registral? São Paulo: Observatório do Registro, 23/10/2021. Acesso aqui.

26 STF, RE 189.736-8-SP, j. 26/3/1996, DJ 27/9/1996, pela 1.ª T. Rel. Min. MOREIRA ALVES. Acesso aqui. No mesmo sentido: ADI-MC 1.378/ES, j. 30/11/1995, DJ 30/5/1997, Rel. Min. CELSO DE MELLO. Acesso aqui. RE: 178.236 – RJ, j. 7/3/1996, DJ 11/4/1997, Rel. Min. OCTÁVIO GALLOTTI. Acesso aqui.

*Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR – Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.

Fonte: Migalhas

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