Gabriel Honorato, especialista em direito familiar, discute o papel crucial do testamento na prevenção de conflitos e na promoção da equidade na sucessão de bens.
No complexo universo das relações familiares e sucessórias, o testamento emerge como uma ferramenta de suma importância, capaz de moldar não apenas a distribuição de bens após o falecimento, mas também de prevenir conflitos e desavenças entre herdeiros. Em meio a esse contexto, compreender o papel estratégico do testamento se torna fundamental para garantir a harmonia e a justiça nas questões sucessórias.
Para enriquecer essa discussão, o advogado especialista em direito familiar, vice-presidente do IBDFAM/PB; diretor estadual adjunto do IBRADIM/PB; diretor tesoureiro do IBDCONT/PB; vice-diretor geral da ESA/PB e coordenador da pós-graduação em Direito das Famílias e Sucessões, Gabriel Honorato, explora a relevância do testamento como um instrumento estratégico, capaz de antecipar cenários e evitar disputas familiares.
CNB/PB: Como o senhor(a) tem visto a utilização do testamento em casos reais para prevenir conflitos familiares durante o processo de inventário? Poderia compartilhar exemplos que ilustrem a eficácia dessa ferramenta na resolução de disputas entre herdeiros?
Gabriel Honorato: O testamento é uma das ferramentas mais utilizadas no planejamento sucessório, desde os tempos mais remotos até os tempos atuais. Mesmo com o surgimento, ao longo dos tempos, de mecanismos inovadores para se desenhar a sucessão – a exemplo das holdings familiares -, não se pode desconsiderar a importância do testamento, sobretudo pela possibilidade de tratar de temas que se mostram inadequados ao trato na modalidade anterior, a exemplo de questões existenciais, como reconhecimento de filho havido fora do casamento, nomeação de tutor para o filho menor ou sugerir curador para o incapaz e tantas outras opções. Insta ressaltar que essas medidas podem prevenir diversos e morosos litígios entre viúvo(a) e herdeiros(as) em meio às dificuldades e complexidades do inventário, tanto no que tange às questões personalíssimas quanto às patrimoniais.
CNB/PB: Qual é o papel do testamento como uma ferramenta estratégica para antecipar e prevenir desavenças familiares? Existem situações específicas em que se recomenda fortemente a utilização do testamento para evitar possíveis litígios entre os herdeiros?
Gabriel Honorato: Um dos problemas comuns em administrações de heranças e em processos de inventário diz respeito ao litígio entre os herdeiros. Na grande maioria dos casos, a falta do titular do patrimônio (de cujus) – que exercia, em vida, os poderes de gestão sobre os bens e de liderança sobre a família –, aliada à ausência de um planejamento sucessório, acaba importando em disputas patrimoniais entre os sucessores que refletem no patrimônio e nos frutos ocasionados por este, fazendo com que o inventário dure anos e, algumas vezes, décadas. O principal papel do testamento é, destarte, evitar que o patrimônio familiar fique travado em virtude de uma omissão quanto ao planejamento sucessório. Desta forma, cumpre negritar que mesmo nas famílias mais unidas e agregadas, o testamento se mostra recomendado, precipuamente para que não se esvaia essa amálgama familiar em razão de disputas patrimoniais. A título de ilustração, cabe trazer à baila as situações nas quais genitores procedem com doações em vida, em montantes distintos, para filhos, deixando outros bens para sucessão causa mortis. Como se sabe, mesmo que não haja litígio, tem-se uma enorme complexidade matemática para se encontrar a equivalência econômica entre as disposições em vida e sucessórias, razão pela qual o testamento pode se mostrar de imensurável serventia, seja pela possibilidade de se deliberar em definitivo a partilha dos bens, seja pela opção de se proceder com dispensas de colação, a respeito de imóveis doados em vida que não passaram por tal juízo de avaliação e definição.
CNB/PB: Poderia explicar de forma detalhada o processo de elaboração e registro do testamento nos cartórios de notas? Como garantir que o documento seja legal e válido, proporcionando segurança jurídica aos envolvidos?
Gabriel Honorato: De início, sugere-se a procura e escolha de um profissional advogado com notória expertise na matéria, para que se possa proceder com um estudo prévio entre as vontades do titular do patrimônio e os mecanismos possíveis no caso concreto. Ato contínuo, aconselha-se fazer o mesmo em relação ao Tabelionato de Notas de preferência do testador.
Em que pese seja possível fazer-se o testamento por meio de instrumento particular (art. 1.876 do Código Civil), este advogado sempre aconselha que o testamento seja lavrado por escritura pública (art. 1.864 do mesmo Diploma Civil), em virtude da segurança jurídica que esta proporciona, a começar pelo aparecimento da certidão negativa de testamento que se é levantada no início do inventário. O mesmo se diz sobre o preenchimento dos requisitos formais, que sempre chamam atenção em meio as ações anulatórias de testamentos.
Em resumo, deve-se buscar um advogado qualificado, escolher o cartório e apresentar a minuta de seu testamento com suas intenções. Em seguida, designa-se data para que o autor da herança compareça ao cartório, acompanhado de 2 (duas) testemunhas, como determina a lei, também com intuito de se solidez jurídica ao instrumento. Faz-se as assinaturas e posteriormente o testamento fica arquivado no cartório, devendo ser apresentado na abertura da sucessão.
CNB/PB: Quais são as dúvidas mais frequentes que surgem entre as pessoas em relação ao testamento? Há conceitos importantes que precisam ser esclarecidos para dissipar mitos ou equívocos sobre esse instrumento legal?
Gabriel Honorato: Uma das dúvidas mais frequentes trata dos limites legais para disposição por testamento, notadamente quando houver herdeiros necessários: ascendentes, descendentes e cônjuge ou companheiro, vide art. 1.845 do Código Civil. Sobre essas pessoas recai o manto da legítima, conforme inteligência que se extrai do art. 1.857 da Carta Civilista, que estabelece a reserva do patrimônio destes no planejamento sucessório. Não há dúvidas, a este respeito, que o parágrafo primeiro do dispositivo em espeque deve ser interpretado no sentido de que o testador pode sim tratar dos bens que compõem a legítima, desde que não haja, naturalmente, prejuízo aos herdeiros necessários.
Assim, é plenamente possível que o testador organize a divisão tanto dos bens disponíveis, quanto daqueles que compõe a legítima, assim como é importante frisar que tal limitação somente surgirá se houver herdeiros necessários. Em não havendo, o testador terá mais liberdade para prestigiar quem bem entender.
CNB/PB: Como o senhor acredita que podemos tornar as informações sobre o testamento mais compreensíveis para o público em geral? Qual é a importância de conscientizar as pessoas sobre o planejamento sucessório e a relevância do testamento nesse contexto?
Gabriel Honorato: Dois mitos precisam ser urgentemente desmistificados: o primeiro diz respeito à superação do tabu de que só testa quem está prestes a morrer. Trata-se de premissa extremamente equivocada, sobretudo em virtude da imprevisibilidade da morte, que pode acontecer décadas à frente ou a qualquer momento. Outro mito que precisa ser superado está atrelado à falsa ideia de que só pessoas de elevado patrimônio precisariam testar, quando, na verdade, o que mais vemos em inventários, são conflitos hereditários envolvendo a classe média, que vezes muitas deixa seu patrimônio sem uma organização pré-estabelecida, deixando margem para o litígio.
Sendo assim, importa consignar que a confecção é um ato de exercício da autonomia privada, para que o testador promova uma autodeterminação patrimonial e um ato de amor para os que ficam, já que tem o fito de evitar conflitos e preservar a unidade familiar.
CNB/PB: Além de evitar conflitos familiares, quais são os outros benefícios ou vantagens de se fazer um testamento de forma adequada e legal? Existem aspectos adicionais que devemos considerar ao planejar nossa sucessão por meio do testamento?
Gabriel Honorato: A sucessão testamentária permite a utilização de diversos mecanismos que facilitam a realização da vontade do testador, a exemplo da instituição de um determinado bem como um legado, fazendo com que este se projete diretamente para o herdeiro legatário, desde a abertura da sucessão, transmitindo-se igualmente os frutos, como aluguéis, rendimentos de carteiras de investimentos, etc. É essa a dicção do art. 1.923, caput e parágrafo segundo, do Diploma Civil.
Outro benefício da sucessão testamentária se mostra na permissão para reconhecimento de dívida de um herdeiro necessário, fazendo com que este receba seus valores devidos sem comprometer sua quota hereditária. Isto é essencial, haja vista que, mesmo que os demais herdeiros reconheçam a dívida, ser o órgão fazendário não reconhecer, aquele pagamento poderá se configurar perante este como doação dos demais herdeiros, fazendo incidir – indesejadamente – a tributação do ITCMD.
Um aspecto adicional que sempre se recomenda ao cliente é realização de um certo exercício de futurologia, sopesando cenários distintos para situações distintas. Em que pese não se possa utilizar de “bola de cristal” para adivinhar o futuro, o Código Civil permite, em seu art. 1.947 e seguintes, a instituição de substituições testamentárias, exatamente para que, caso na abertura da sucessão o herdeiro testamentário/legatário não esteja mais vivo ou recurse a herança, que se proceda com a substituição deste por outrem, sendo possível fazer diversas previsões neste sentido, instituindo “herdeiros suplentes”, que serão chamados à sucessão, de acordo com a ordem estabelecida.
O mesmo pode se fazer em relação aos bens, caso a partilha prevista viole alguma disposição legal, como o instituto da legítima. Em tal cenário, é possível instituir cláusula de redução testamentária, indicando quais bens e quais disposições deverão ser modificadas em tais hipóteses. Outra cláusula importante trata da prevenção de rompimento, caso o testador deseje manter aquelas disposições mesmo no aparecimento de um herdeiro necessário desconhecido, cláusula esta que geralmente está coligada à cláusula anterior.
Enfim, em que pese a possibilidade de se proceder com este exercício de futurologia, o ideal é que se realize uma atualização do testamento sempre que houve alteração nas circunstâncias fáticas.
Fonte: Assessoria de comunicação do CNB/PB