O presente artigo visa trazer algumas explicações acerca de recentes julgados que versam respeito da hipótese de divórcio após a morte, que garante o interesse do particular manifestado antes da morte do cônjuge, para que haja a dissolução do casamento, por meio do pedido de separação.
Por meio do revolvimento histórico, entendemos que o motivo de demorarmos tanto para conseguir o direito à separação está relacionada à grande influência dos nossos colonizadores, às lutas liberais e igualitárias.
Todavia, para que seja possível essa compreensão, é necessário retornar à história do Brasil, para que se entenda de onde veio e como se fundamentam esses novos entendimentos, bem como os princípios que os fundamenta.
O Brasil, mesmo após a Proclamação da Independência, continuou a sofrer forte influência do regime monárquico, principalmente por meio de dogmas da Igreja, repercutindo sobretudo na extensão e configuração de garantias e direitos individuais, bem como no casamento.
Apesar das aspirações iluministas que decorreram das revoluções passadas, os traços da distinção entre Igreja e Estado apenas passaram a se evidenciar a partir de 1889, porquanto o Estado observa a necessidade de regular as práticas de celebração de casamento. Assim, em 1890, o Brasil, por meio do Decreto 521, dispôs que o casamento civil deveria preceder as cerimônias religiosas de qualquer culto.
Dessa forma, foi disciplinada a regulamentação a respeito da separação de corpos, sendo possível em casos de adultério, maus-tratos ou injúria grave, abandono voluntário do domicílio conjugal pelo período de dois anos contínuos e mútuo consentimento dos cônjuges (desde que casados por mais de dois anos).
A primeira tentativa de proposição legislativa ao divórcio surgiu em 1893, pelo então deputado Érico Marinho. Entre 1896 e 1899, ainda se discutia o projeto de lei e essa discussão ingressava na Câmara e no Senado.
Apenas em 1901 surgiu a primeira legislação sobre a separação, por meio do projeto de Código Civil apresentado por Clóvis Beviláqua, duramente criticado pelo então senador Rui Barbosa e outros tantos juristas. Sofrendo inúmeras alterações, o Código foi aprovado em 1916 e entrou em vigor em 1917, permanecendo vigente até 2002.
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald definem o código de 1916 como
“(…) resultante das concepções individualista e voluntarista oitocentistas, incorporadas pelas codificações XIX e XX, sob a influência do Code de France (código napoleônico) e do BGB alemão -, o Direito Civil esteve liberto da incidência da norma constitucional. O Direito Constitucional se restringia a cuidar da organização política e administrativa do Estado, relegando para o Código Civil a tarefa de disciplinar as relações privadas. Naquela época, o Direito Civil aspirava o aniquilamento dos privilégios feudais, devendo os valores preconizados pela Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade). Reconhecia-se, assim, a necessidade de afirmar valores individualistas, permitindo o acesso a bens de consumo, conferindo à legislação privada nítida feição patrimonialista.”
Durante a vigência desse Código, a separação de corpos anteriormente mencionada foi denominada “desquite”, que ocorria da forma amigável ou judicial. No entanto, apesar de a sentença declarar o término da sociedade conjugal, pondo termo ao regime de bens, mantinha o vínculo matrimonial.
Cabe destacar que os artigos 317 e 318, do Código Civil de 1916, ainda mencionavam como causas taxativas para o divórcio aquelas descritas por meio do Decreto 521 de 1890. Ainda com grande presença dos princípios católicos na elaboração das leis, apenas em 1937 a Constituição retirou do seu ordenamento jurídico a indissolubilidade do casamento.
O instituto do divórcio só foi instituído em 1977, regulamentado pela Lei 6.515 de 26 de dezembro de 1977, de autoria do senador Nelson Carneiro. Essa nova norma permitiu a extinção – por inteiro – do vínculo advindo do casamento e, como consequência, autorizou que as pessoas divorciadas se casassem novamente.
Ainda sobre forte influência de dogmas religiosos, o instituto do divórcio provocou grande alvoroço, mesmo o Estado sendo laico desde primeira Constituição da República (1891). Mesmo assim, o instituto do desquite foi denominado “separação” e permanecia como um estágio intermediário para a obtenção do divórcio.
Em 1989, a Lei 7.841 revogou a Lei do Divórcio (1977), que continha restrição de sucessivos divórcios. Algumas décadas depois, em 2007, foi promulgada a Lei 11.441 de 2007, que permitiu que a separação e o divórcio consensuais pudessem ser requeridos administrativamente.
Ou seja, a partir de 2007, passou-se a dispensar a necessidade de ação judicial, sendo obrigatório apenas a presença dos cônjuges no cartório de notas, assistidos de um advogado para formalizar o pedido. O único impedimento, aliás, ocorria na hipótese da presença de filhos incapazes (observada a Lei 13.146/2015, que altera a redação do artigo 3º e 4º do Código Civil).
Recentemente, tramita na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 4.288/2021 de autoria do deputado Carlos Bezerra, que possibilita o divórcio após a morte de um dos cônjuges. O texto prevê essa hipótese quando a vontade for manifestada antes do falecimento e os herdeiros optarem por dar prosseguimento.
Esse projeto de lei se fundamenta no Princípio da Autonomia da Vontade, típico do Direito Civil, fundado na ideia de que as pessoas podem gerar normas e obrigações uma para com as outras, por meio de contratos, que são celebrados com base em suas vontades individuais.
Atendendo a esses negócios jurídicos, surge uma relação jurídica e normas aplicáveis aos indivíduos daquela relação. Assim, paralelamente as obrigações que derivam da lei, existem também as obrigações que derivam da liberdade individual das pessoas manifestadas em vida.
Nas palavras de Francisco dos Santos Amaral Neto:
“A autonomia privada constitui-se, portanto, no âmbito do Direito Privado, em uma esfera de atuação jurídica do sujeito, mais propriamente um espaço de atuação que lhe é concedido pelo direito imperativo, o ordenamento estatal, que permite, assim, aos particulares, a autorregulamentação de sua atividade jurídica. Os particulares tornam-se, deste modo e nessas condições, legisladores sobre sua matéria jurídica, criando normas jurídicas vinculadas, de eficácia reconhecida pelo Estado. Tratando-se de relações jurídicas de Direito Privado, os particulares são os que melhor conhecem seus interesses e valores e, por isso mesmo, seus melhores defensores”.
Cientes de que projetos de lei são criados em razão das necessidades cotidianas dos indivíduos, atrelados aos princípios constitucionais, observamos que os tribunais de Minas Gerais e São Paulo seguem estabelecendo entendimentos jurisprudenciais de que é possível ser concedido o divórcio mesmo após a morte de um dos cônjuges.
Em 2021, por exemplo, a 4ª Câmara Cível do TJ-MG concedeu, por maioria de votos, a referida espécie de divórcio. No caso, as partes já se encontravam separadas de corpos e tinham se manifestado sobre o interesse na dissolução do casamento. Entretanto, em novembro de 2020, o ex-marido veio a falecer, vítima de Covid-19. Nesse caso, a única herdeira do falecido pediu o divórcio após a morte. De acordo com o julgado:
“A superveniência da morte de um dos cônjuges não é suficiente para superar ou suplantar o acordo de vontades anteriormente manifestado, o qual possui valor jurídico e deve ser respeitado, mediante a atribuição de efeitos retroativos à decisão judicial que decreta o divórcio do casal”
Já no que tange o entendimento do tribunal de São Paulo, já há decisões que reconhecem o divórcio após a morte, com o efeito retroativo a data do ajuizamento da ação, de forma excepcional. Simultaneamente, existem também decisões que negam os pedidos, considerando que o casamento é extinto pela morte.
Ainda sem uma jurisprudência dos tribunais superiores tratando da temática e sem a aprovação do Projeto de Lei nº 4.288/2021, os tribunais estaduais estão julgando com base em princípios ligados ao Direito Civil Constitucional, o que provoca grande instabilidade jurídica.
Antes de mais nada, cabe destacar que existe uma lacuna importante a ser observada pelo mundo jurídico, que também pode vir a provocar os tribunais e formar jurisprudência. Se o tabelião pode realizar o divórcio, desde que atenda aos requisitos já anteriormente mencionados, a pessoa que está separada de forma consensual e judicialmente pode requerer o divórcio após a morte de um dos cônjuges separados perante o tabelionato de notas? A resposta é sim.
No Rio de Janeiro, o 24º Ofício de Notas, na pessoa do tabelião George Vinicius da Silva Gomes, realizou, no mês de outubro de 2022, um divórcio em que um dos cônjuges já era falecido e o cônjuge sobrevivente apresentou a sentença judicial com a homologação da separação consensual, expedida pela 1ª Vara de Família da Capital do Rio de Janeiro, proferida em 13 de agosto de 1986, requerendo ao tabelião, por meio de escritura, o pedido de conversão de separação em divórcio.
O cônjuge varão faleceu no ano de 2014 e, em 2022, a inventariante representou o de cujus e o cônjuge virago compareceu ao ato para assinatura, devidamente acompanhadas pela advogada, que prestou assistência jurídica para formalizar a escritura e após levar o ato a registro nos cartórios competentes, o que já foi concluído nos dias atuais.
Essa conversão só foi possível graças ao Enunciado 5.924 da Jornada de Direito Notarial e Registral, que regulamentou em 9 de agosto de 2022 que:
“O inventariante nomeado pelos interessados poderá, desde que autorizado expressamente na escritura de nomeação, formalizar obrigações pendentes do falecido, a exemplo das escrituras de rerratificação, estremação e, especialmente, transmissão e aquisição de bens móveis e imóveis contratados e quitados em vida, mediante prova ao tabelião”.
Em suma, estamos longe de esgotar esse tema, mas acredito que o Projeto de Lei 4.288/2021 tende a ser aprovado, o que provocará alterações no Código Civil que regulamenta os contratos, inclusive o de casamento e até mesmo nas leis previdenciárias. Uma vez que, percebe-se que “o Texto Constitucional, sem sufocar a vida privada, conferiu maior eficácia aos institutos fundamentais do Direito Civil, revitalizando-os, à luz de valores fundamentais aclamados como garantias e direitos fundamentais do cidadão”.
Apesar da instabilidade jurídica dos julgados de São Paulo e Minas Gerais, já se mostrou favorável nos tribunais o entendimento de deferimento do divórcio após a morte de um dos cônjuges, desde que essa vontade tenha sido manifestada em vida, fundamentada pelo Princípio da Autonomia da Vontade, o que deve repercutir esse julgado em todo território, pacificando futuramente a jurisprudência nesse sentido.
Outro ponto primordial na análise do presente artigo e que merece o devido destaque é a efetivação do registro da Escritura Pública de Divórcio Post Mortem lavrada no 24º Ofício de Notas, tendo sido o procedimento de registro realizado no 11º Registro de Imóveis do Rio de Janeiro, uma vez que a partilha dos bens que compunham o monte do casal só pode ser devidamente regularizada após o término do referido procedimento.
Ou seja, com a lavratura do ato e posterior registro, ocorreu a solução das pendências referentes a regularização dos bens do casal, e ainda, a plena observância do princípio da autonomia de vontade das partes envolvidas.
Da mesma forma, e também de suma importância, tendo em vista a necessidade de regulamentação em todas as esferas administrativas, a referida escritura foi averbada na certidão de casamento dos requerentes, e nela constou a efetivação do divórcio post mortem, com a devida distribuição no 1º Registro Civil de Pessoas Naturais do Rio de Janeiro, ato pioneiro, proveniente do 24º Ofício de Notas.
Diante de todo o exposto no presente artigo, em questão de tempo, mais cartórios passarão a converter sentenças judiciais de separação consensual em divórcio, visto que a vontade do particular precisa ser atendida quando não causar prejuízo a sociedade. Além da principal vantagem, desafogar o judiciário e aproximar as necessidades dos dramas e dimensões da vida moderna para as resoluções administrativas na esfera extrajudicial.
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Bibliografia
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George Vinicius da Silva Gomes é tabelião substituto do 24º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, bacharel em Direito pela Universidade Veiga de Almeida e pós-graduado em Direito Notarial e Registral.
Fonte: ConJur