A Constituição da República, em seu artigo 37, § 6º, prescreve que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Referida regra é definida pela doutrina como responsabilidade objetiva da administração pública, na modalidade do risco administrativo.
Nesse diapasão, conforme anotam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino sobre o dispositivo supracitado, sempre de forma muito lúcida [1],
“Esse dispositivo constitucional atribui ao Estado responsabilidade civil objetiva, nos moldes da teoria do ‘risco administrativo’, pelos danos causados a terceiros em decorrência de atuação de seus agentes. O Supremo Tribunal Federal firmou na sua jurisprudência o entendimento de que esse e também o preceito aplicável em relação a prejuízos ocasionados a particulares por omissão da Administração Pública. Conforme será estudado adiante, em tópico próprio, há divergência na doutrina administrativista quanto a incidência dessa modalidade de responsabilidade extracontratual nas hipóteses de omissão estatal. A responsabilidade civil objetiva prevista no art. 37, § 6.°, não se restringe a prática de atos administrativos; mesmo a atuação administrativa que não configure ato administrativo pode acarretar obrigação de reparar dano.” (g. n.)
Nada obstante, a Lei Federal nº 8.935/94, em seu artigo 22, com redação dada pela Lei nº 13.286/2016, estabelece que os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso.
De seu turno, o Supremo Tribunal Federal, apreciando a responsabilidade dos notários e registradores, deixou assentado, nos autos do Recurso Extraordinário nº 842.846/RJ, com repercussão geral reconhecida, verbis:
“EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DANO MATERIAL. ATOS E OMISSÕES DANOSAS DE NOTÁRIOS E REGISTRADORES. TEMA 777. ATIVIDADE DELEGADA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO DELEGATÁRIO E DO ESTADO EM DECORRÊNCIA DE DANOS CAUSADOS A TERCEIROS POR TABELIÃES E OFICIAIS DE REGISTRO NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES. SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS. ART. 236, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO PELOS ATOS DE TABELIÃES E REGISTRADORES OFICIAIS QUE, NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES, CAUSEM DANOS A TERCEIROS, ASSEGURADO O DIREITO DE REGRESSO CONTRA O RESPONSÁVEL NOS CASOS DE DOLO OU CULPA. POSSIBILIDADE.”
Com efeito, no julgado em destaque, a Suprema Corte deu guarida ao disposto na lei federal de regência, consagrando a responsabilidade subjetiva dos notários e registradores, afirmando que estes exercem atividade por delegação do poder público, o qual responde de forma objetiva por eles.
Ademais, o tribunal afirmou que a literalidade do texto constitucional se refere a pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos, enquanto que notários e tabeliães não seriam pessoas jurídicas.
Ainda, o Pretório Excelso asseverou que a responsabilização objetiva depende de expressa previsão normativa e não admite interpretação extensiva ou ampliativa, posto regra excepcional, impassível de presunção.
Contudo, entendemos carecer razão ao guardião da Constituição Federal.
Deveras, os oficiais de registros públicos ocupam funções dentro de Cartórios, estes sim pessoas jurídicas de direito privado, com CNPJ próprio. Logo, a responsabilidade objetiva deveria residir sobre as Serventias, e não sobre o Estado, que tem uma responsabilidade apenas subsidiária sobre seus concessionários e delegatários.
Nesse sentido, por exemplo, a Excelsa Corte, nos autos do Recurso Extraordinário nº 662.405/AL, decidiu que a responsabilidade do ente público é subsidiária, verbis:
“EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ANULAÇÃO DO CONCURSO POR ATO DA PRÓPRIA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, EM FACE DE INDÍCIOS DE FRAUDE NO CERTAME. DIREITO À INDENIZAÇÃO DE CANDIDATO PELOS DANOS MATERIAIS RELATIVOS ÀS DESPESAS DE INSCRIÇÃO E DESLOCAMENTO. APLICABILIDADE DO ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RESPONSABILIDADE DIRETA DA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO ORGANIZADORA DO CERTAME. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO ENTE PÚBLICO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO.” (g. n.)
Ora, neste último julgado, a corte obtemperou que a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público responde de forma primária e objetiva por danos causados a terceiros, visto possuir personalidade jurídica, patrimônio e capacidade próprios.
Outrossim, o mesmo deveria ocorrer com os cartórios extrajudiciais, visto que sua personalidade jurídica, patrimônio e capacidade próprios se materializam na pessoa de seu titular.
De outro vértice, ao contrário do afirmado pelo Supremo, a responsabilidade objetiva no âmbito da administração pública não é regra excepcional, é regra geral consagrada no capítulo da administração pública, enquanto a responsabilidade subjetiva é a regra geral das relações privadas, conforme previsão do artigo 186 do Código Civil de 2002.
Além disso, a expressa previsão normativa consta exatamente no artigo 37, § 6º, da Constituição de Outubro, norma de eficácia plena a aplicabilidade imediata, conforme classificação consagrada de José Afonso da Silva.
Nessa senda, conforme leciona Carvalho Filho [2],
“Nem sempre, entretanto, a responsabilidade do Estado será primária. Como já vimos anteriormente, há muitas pessoas jurídicas que exercem sua atividade como efeito da relação jurídica que as vincula ao Poder Público, podendo ser variados os títulos jurídicos que fixam essa vinculação. Estão vinculadas ao Estado as pessoas de sua Administração Indireta, as pessoas prestadoras de serviços públicos por delegação negocial (concessionários e permissionários de serviços públicos) e também aquelas empresas que executam obras e serviços públicos por força de contratos administrativos. Em todos esses casos, a responsabilidade primária deve ser atribuída à pessoa jurídica a que pertence o agente autor do dano. Mas, embora não se possa atribuir responsabilidade direta ao Estado, o certo é que também não será lícito eximi-lo inteiramente das consequências do ato lesivo. Sua responsabilidade, porém, será subsidiária, ou seja, somente nascerá quando o responsável primário não mais tiver forças para cumprir a sua obrigação de reparar o dano.” (g. n.)
Contudo, o autor parece não aceitar a responsabilidade subsidiária do Estado [3].
Por sua vez, a professora Di Pietro observa que a regra da responsabilidade objetiva exige alguns requisitos, dentre eles que a entidade de direito privado preste serviço público e que o dano seja causado por agente das aludidas pessoas jurídicas, o que abrange todas as categorias, de agentes políticos, administrativos ou particulares em colaboração com a Administração, sem interessar o título sob o qual prestam o serviço [4].
De outra banda, o professor Spitzcovsky faz valorosas observações sobre a responsabilidade dos notários:
“A leitura do dispositivo reproduzido deixa entrever que a atividade notarial retrata modalidade de serviço público cuja titularidade, portanto, fica reservada à Administração que, no entanto, por delegação, transfere-a para particulares que vão exercê-la em caráter privado. Outrossim, em que pese o § 3º preconizar o ingresso por meio de concurso público, não se vislumbra nenhuma referência acerca da titularização de cargos públicos, o que exclui os notários do conceito de servidor público, pelo menos em sentido estrito. Em outras palavras, os notários, ainda que considerados servidores públicos em sentido amplo, não poderiam, por exercerem atividades em caráter privado, por delegação do Poder Público, titularizar cargos em caráter efetivo” [5].
Mais a frente, o autor arremata dizendo que [6]
“Ainda que prevaleçam dúvidas acerca da constitucionalidade dessa lei, por implicar atribuir um perfil diferenciado de responsabilidade a essa categoria de agentes públicos, enquanto não advier qualquer manifestação do Poder Judiciário, com efeito erga omnes, a conclusão que se apresenta em relação a este item é aquela que resulta da expressa previsão legal, dotada que é de presunção de legitimidade.” (g. n.)
Noutra quadra, professor Rafael Oliveira, de forma acertada, pontua que [7]
“Não obstante a palavra final do STF, em nossa opinião, os notários e registradores, de um lado, deveriam responder de forma primária e objetiva pelos danos causados a terceiros, e, de outro lado, o Estado seria responsabilizado de forma subsidiária, quando insuficientes os recursos dos delegatários para indenizar a vítima. O tratamento, a nosso ver, deve ser análogo ao dispensado à responsabilidade por danos causados pelas concessionárias de serviços públicos. A atividade delegada é exercida por conta e risco do delegatário, que possui, portanto, responsabilidade pessoal e direta pelos danos gerados no exercício da função. Nesse caso, a responsabilidade é do notário e do registrador, e não do cartório, tendo em vista a ausência de personalidade jurídica das serventias extrajudiciais. Ademais, enquanto os servidores públicos são remunerados pelo próprio Estado (recursos orçamentários), os notários e registradores são remunerados por meio de emolumentos devidos pelos usuários das serventias. Por fim, ao contrário dos servidores públicos, os notários e registradores não se submetem à hierarquia administrativa, mas à fiscalização do Poder Judiciário.” (g. n.)
Exatamente nessa linha, o STF, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.602/MG, fixou o entendimento de que o regime jurídico dos servidores públicos é inaplicável aos notários e registradores, verbis:
“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTO N. 055/2001 DO CORREGEDOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. NOTÁRIOS E REGISTRADORES. REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS. INAPLICABILIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 20/98. EXERCÍCIO DE ATIVIDADE EM CARÁTER PRIVADO POR DELEGAÇÃO DO PODER PÚBLICO. APOSENTADORIA COMPULSÓRIA AOS SETENTA ANOS. INCONSTITUCIONALIDADE.”
Além de tudo, o Supremo Tribunal, no Recurso Extraordinário nº 808.202/RS, fixou a tese de que apenas os substitutos ou interinos designados para o exercício da titularidade da serventia extrajudicial se submetem ao teto remuneratório constitucional.
Finalmente, para o professor Mazza, os cartórios e ofícios em si são delegações sem personalidade jurídica própria, razão pela qual é impossível acionar judicialmente a serventia (cartório, registro ou tabelionato) [8].
Ademais, o professor salienta que [9]
“A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, todavia, registra visão oposta, na medida em que considera que a responsabilidade é direta do notário ou registrador, podendo o Estado ser acionado somente em caráter secundário e subsidiário, ou seja, na hipótese de esgotar-se o patrimônio do titular: (…) Parece-nos ser esta última a posição mais acertada. Assim como ocorre nas demais modalidades de delegação, notários e registradores prestam o serviço por sua conta e risco. De acordo com a ordem jurídica pátria, o usuário tem a prerrogativa de acionar diretamente o prestador do serviço público. Por isso, havendo qualquer prejuízo ao usuário, a responsabilidade é objetiva e direta do titular, assegurada ação regressiva deste contra o preposto ou funcionário nos casos de dolo ou culpa.” (g. n.)
Nessa trilha, o Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Recurso Especial nº 561.317/PR, assim havia decidido, conforme a ementa que segue:
“ADMINISTRATIVO. DANOS MATERIAIS E MORAIS CAUSADOS POR TITULAR DE SERVENTIA EXTRAJUDICIAL. ATIVIDADE DELEGADA. RESPONSABILIDADE DO NOTÁRIO. PRECEDENTES. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS SEM EFEITOS INFRINGENTES. 2. A jurisprudência mais recente desta Corte foi firmada no sentido da responsabilidade dos notários e oficiais de registro por danos causados a terceiros, não permitindo a interpretação de que há responsabilidade pura do ente estatal.”
Destarte, entendemos que assiste razão a corrente que defende a responsabilidade objetiva e primária dos tabeliães, assim como a jurisprudência do STJ.
Com efeito, o tratamento dos notários deve ser igual ao conferido pela Lei Magna aos concessionários e permissionários de serviços públicos, que exercem as atividades delegadas por sua conta e risco, sob pena de violação do princípio da isonomia.
De resto, os titulares de serventias extrajudiciais não podem ser considerados agentes públicos, visto que não ocupam cargo público e não se submetem as regras constitucionais da aposentadoria compulsória em razão da idade e ao teto remuneratório, conforme decisões do STF.
Outrossim, o concurso público prestado por aqueles que desejam titularizar serventias extrajudiciais equivale a um procedimento licitatório, o qual destina-se a contratar a proposta mais vantajosa para a administração ou, melhor dizendo, contratar o particular mais bem preparado para prestar os relevantes serviços à coletividade, em homenagem ao princípio da impessoalidade.
Concluindo, entendemos que a responsabilização subjetiva e secundária dos registradores e notários consagra o melhor de dois mundos, visto que além de titularizarem com exclusividade rentáveis negócios públicos, estão sujeitos a um menor risco econômico do que os concessionários e permissionários de serviços públicos, sendo inconstitucional, no ponto, a Lei nº 8.935/94 com a redação dada pela Lei nº 13.286/2016.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 29ª Ed. – Rio de Janeiro. Forense, Método, 2021.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ª Ed. – São Paulo: Atlas, 2020.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020.
MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 11ª Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende de. Curso de Direito Administrativo. 9ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense, Método, 2021.
Spitzcovsky, CELSO. Direito Administrativo. 2ª Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
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[1] Direito Administrativo Descomplicado. 29ª Ed. – Rio de Janeiro. Forense, Método, 2021, pág. 903. [2] Manual de Direito Administrativo. 34ª Ed. – São Paulo: Atlas, 2020, pág. 690. [3] Op. cit. pág. 680. [4] Direito Administrativo. 33ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020, pág. 1499. [5] Direito Administrativo. 2ª Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019, pág. 695. [6] Op. cit. pág. 699. [7] Curso de Direito Administrativo. 9ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense, Método, 2021, pág. 1397. [8] Manual de Direito Administrativo. 11ª Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021, pág. 735. [9] Op. cit. pág. 737._________________
Celso Bruno Tormena é procurador municipal em SP, especialista em Direito Público, Processo Penal e segurança pública e graduando em criminologia.
Fonte: ConJur