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Até 1988, os titulares dos cartórios e tabelionatos eram nomeados pelo juiz da respectiva comarca, e a sucessão do cargo se tornava, na prática, hereditária. Não se pode negar que houve um avanço civilizatório quando a Constituição Cidadã trouxe a obrigatoriedade do concurso como único meio de acesso ao exercício dessa função pública, mas as normas que regem os trabalhadores das serventias extrajudiciais ficaram para trás e ainda precisam de ajustes.
Esse tema foi abordado na audiência pública de 8/4, realizada na Alesp pelo deputado estadual Carlos Giannazi, com a presença da deputada federal Luciene Cavalcante e do vereador Celso Giannazi (todos do PSOL), além da juíza Cristina Mogioni – que representou o corregedor-geral da Justiça, Francisco Loureiro – e de diversos serventuários e ex-serventuários paulistas.
Lei dos Cartórios
A Lei 8.935, de 1994, estabeleceu que todos os trabalhadores de apoio aos notários e os oficiais de registro passariam a ser contratados diretamente por estes, “com remuneração livremente ajustada e sob o regime da legislação do trabalho”. Entre 1988 e 1994, esse mesmo entendimento já vinha sendo adotado como norma constitucional autoexecutável.
Antes de 1988, porém, esses trabalhadores eram vinculados a um estatuto especial que lhes garantia, além de estabilidade, a aposentadoria por meio da Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado (Lei 10.393/1970).
É aqui que surge o problema. Um titular de cartório não tem remuneração fixa. Seu “salário” é o lucro líquido auferido pela serventia. Por isso, quando um novo tabelião recebe sua outorga, ele não se sente – e de fato não é – obrigado a manter os servidores contratados por seu antecessor. Então, enquanto agente privado que busca o maior lucro, o novo titular não recepciona os trabalhadores celetistas, busca, ao contrário, novos trabalhadores pelo menor salário possível.
Diferente do que acontece numa sucessão empresarial, situação em que o novo dono é obrigado a assumir o passivo trabalhista do estabelecimento, o novo titular do cartório não tem nenhuma responsabilidade sobre os serventuários, que ficam sem ter a quem reclamar seus direitos.
Como a mudança de titularidade do cartório se dá, em grande parte dos casos, por motivo de morte, os trabalhadores, agora desempregados, terão de habilitar seu crédito trabalhista junto ao espólio do patrão falecido, o que costuma demandar anos.
Ínterim
Como se a situação já não fosse complicada o bastante, ocorre que entre a vacância e a nova outorga os cartórios não podem parar. Por isso é nomeado um substituto, que, à diferença do titular, não ficará com todo o lucro do cartório, mas com no máximo 90% do teto salarial dos ministros do STF (hoje de R$ 44.008,52). Isso faz muita diferença conforme o cartório. O 11º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, por exemplo, arrecadou no segundo semestre de 2023 o total de R$ 74,3 milhões, mais de R$ 12 milhões por mês.
Ainda assim, R$ 40 mil mensais seriam uma excelente remuneração. Então por que muitos serventuários recusam essa suplência, que pode durar até cerca de três anos? A resposta é que, com a chegada do novo titular, é quase certo que boa parte dos empregados celetistas serão demitidos. E os substitutos serão acionados na Justiça do Trabalho como responsáveis solidários por todas as verbas rescisórias, não apenas por aquelas referentes ao período em que estiveram à frente do cartório.
Projeto de lei nacional
Luciene Cavalcante apresentou na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1030/2024, que altera os artigos 21 e 30 da Lei 8.935/1994 para estabelecer a sucessão trabalhista, ou seja, o novo titular será solidariamente responsável pelo total do passivo, sendo assegurado o direito de ação regressiva contra os seus antecessores. Para a satisfação das dívidas, o PL autoriza a penhora da renda do cartório. Esses dois comandos são um desestímulo para as demissões, mas, além disso, o projeto prevê o respeito aos direitos trabalhistas adquiridos pelos empregados, como salário, jornada de trabalho, benefícios.
Com a proposta, a deputada Luciene se contrapõe ao entendimento da Corregedoria-Geral de Justiça de São Paulo, que autoriza novo titular do cartório a até mesmo reduzir os salários dos empregados que recepcionar, uma vez que não estaria caracterizada uma continuidade na prestação do serviço, mas um vínculo novo.
Em grande parte, isso ocorre porque os cartórios e tabelionatos, apesar de terem CNPJ, não têm personalidade jurídica, portanto o vínculo seria com a pessoa física do agente de registro ou do tabelião. “Apesar da natureza especial desses órgãos, nós sabemos que se trata de empreendimentos milionários. Não é admissível que seus trabalhadores sejam abandonados de forma tão perversa e cínica”, afirmou a deputada.
Luciene ainda requereu a realização de uma audiência pública na Câmara dos Deputados, reuniões com o Ministério do Trabalho e com o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Salientou, entretanto, que a manutenção da mobilização é imprescindível para qualquer avanço. “Todos devem ter a consciência da luta coletiva. Se vocês pararem um dia, vocês param este país”, sugeriu.
Para o vereador Celso Giannazi – que é auditor fiscal da prefeitura de São Paulo -, ocorre entre os titulares de cartório uma sucessão similar à empresarial, embora com base no CPF do tabelião, e não no CNPJ do cartório. “A prefeitura cobra o ISS dos tabeliães e agentes de registros com base nesse entendimento de sucessão empresarial”, comparou.
Faca no pescoço
Sérgio Ricardo Betti, serventuário em Barueri, mostrou um levantamento feito em 28 cartórios, de um universo de mais de 200 cartórios paulistas. Somente nessa amostra, que representa cerca de 15% do total, 977 são funcionários celetistas e 33 estatutários. “São mais de mil famílias que estão aterrorizadas com essa situação. Estamos todos nas mãos de um novo titular que vai chegar, ninguém sabe com que critérios, vai apontar o dedo para cada um deles e falar: eu quero você, você não. Essa situação tem de acabar”.
Seu colega de cartório, José Ricardo Marques Braz, afirmou que os demitidos sempre têm a possibilidade de buscar seus direitos na Justiça Trabalhista. “O principal problema é o tempo, uma vez que as verbas rescisórias são especialmente importantes naquele momento difícil em que o trabalhador precisa ter sua dignidade preservada”, afirmou.
Carlos Giannazi afirmou que já teve duas reuniões sobre o tema, uma com o corregedor-geral e outra com o presidente do TJ, Fernando Torres Garcia. “Ambos sinalizaram a intenção de aprofundar o debate e buscar uma saída”, disse Giannazi, que apresentou aos magistrados o exemplo adotado pelo Estado no Mato Grosso do Sul. A solução adotada pelo Estado vizinho foi a criação de um fundo específico para os direitos trabalhistas, com contribuições mensais dos cartórios e sob supervisão da Corregedoria-Geral de Justiça.
Participaram do evento Darlene Mattes e Maurício Canto, que encabeçaram, respectivamente, os movimentos de resistência à extinção das carteiras previdenciárias dos serventuários e dos advogados no Ipesp.